25 CHUMBINHOS
Na manhã fria de junho, sem ter muito o que fazer, senti vontade de caçar.
Na parede da varanda continua pregada a tábua larga de braúna que eu preparei faz mais de cinquenta anos e nos ganchos, que Zezinho ferreiro fez para mim, jaziam a minha combreia, velha companheira de caçadas memoráveis, o bisaco feito com lona de caminhão, os dois polvorinhos feitos com chifres.
O maior, é de boi, para levar o chumbo e o menor, feito de chifre de carneiro, para levar a pólvora com o dosador servindo de tampa, os dois são enfeitados com couro e prata.
Esse conjunto preso com corrente de prata, foi o prêmio do concurso de tiro que eu participei lá para as bandas de Uruguaiana. Eu nem queria participar, mas por insistência dos organizadores e dos amigos que eu tinha entre os argentinos, os uruguaios e brasileiros que moravam ali, todos eles gaúchos de boa cepa, não tive como me negar e eu fui o único que acertou os cinco tiros nas moscas dos alvos. Aí me deram o prêmio...
Quando peguei na espingarda, senti ela tremer na minha mão como quem diz, bora simbora caçar, homem. Já faz muito tempo que estou aqui juntando poeira, porque dona Maria tem sobroço de pegar n’eu...
Cabra caçador que nem eu, não tem coragem de se negar a atender um pedido dessa qualidade não.
Abri o baú que fica embaixo da tábua e lá estavam as perneiras feitas com couro de boi para evitar picada de cobra, meu facão rabo de galo, as peças de corda feitas com couro de bode, meu chapéu de brim, com protetor de pescoço, que mais parece véu para mulher entrar na igreja.
Esse chapéu eu ganhei de presente do cônsul da Austrália, quando ele veio passar um final de semana na fazenda e eu levei ele para pescar no açude.
Nesse dia, por causa do sol forte, ele teve que usar chapéu de palha. Gostou, mas disse que os chapéus que eles usam na terra dele são melhores e dias depois recebi um que ele mandou de lá para mim.
As botas com solado de pneu ainda estavam com o sujo da última caçada...
Fui no quarto, mudei de roupa, vesti meu blusão de caça e avisei a Maria, olhe, vou dar um bordejo pelo mato para ver se pego alguma coisa. Se a pontaria ainda prestar, devo trazer algum bicho para a janta.
Andei por mais de hora por dentro da mataria, mas não encontrei nada.
Por causa do frio, o mundo estava parado, nada se mexia.
O único som que tinha era dos gravetos se quebrando quando eu pisava neles.
Quando fui chegando perto do açude, ouvi o canto da seriema.
Aí pensei comigo, se a seriema saiu para comer, é sinal de que os outros saíram também. Botei a combreia no chão escorada na barriga, despejei no cano uma medida de pólvora, peguei bucha no bisaco e soquei bem apertado.
Quando peguei no polvorinho do chumbo, achei que ele estava muito leve, e em vez colocar o chumbo no medidor, botei na palma da mão e vi que só tinha 25 bolinhas. Isso só dava para um tiro.
Só mesmo por milagre é que eu ia conseguir pegar alguma coisa.
Mas, como diz o ditado, o que não tem jeito, ajeitado já está.
Despejei o chumbo pelo cano da combreia, peguei bucha nova no bisaco enrolei na palma da mão como quem faz bola de fumo picado e soquei mais frouxa do que a primeira.
Agora eu estava armado. e pé ante pé, fui me chegando para perto do açude.
Naquele mato ralo das beiradas d’água tinha um bando de avoante comendo semente de capim que mal dava para se ver o chão.
Fui me aproximando bem devagarinho, mas quando elas me viram, levantaram voo.
Mesmo sem fazer pontaria, passei o dedo no gatilho. Com o som do tiro, todas outras foram embora, mas 25 ficaram no chão.
Só por milagre mesmo. Os chumbos frouxos se espalharam e cada um matou uma arribaçã.
Tirei as penas antes que elas esfriassem, botei no bisaco e voltei para casa. Não adiantava esperar por outros bichos porque não tinha mais chumbinhos...
- Oh seu Olegário, quando o senhor for caçar novamente, eu quero ir com o senhor, vi!
- Ah Marcolino, eu já estou muito velho para essas empeleitadas...
GLOSSÁRIO
Arribaçã = (avoante), bomba Zenaida auriculada
Bisaco = alforje
Boa cepa = diz-se de videira de boa qualidade
Bordejo = no contexto, andar a esmo
Braúna = baraúna, árvore Shinopsis brasiliensis
Combreia = espingarda antiga, também conhecida por soca-soca ou bate bucha
Empeleitada = empreitada, (aventura no contexto)
Polvorinho = utensílio para transporte de pólvora e/ou chumbo, feito com metal ou chifres
Simbora = aglutinação de vamos embora
Sobroço = medo
Vi = aglutinação de viste (verbo Ver, pretérito perfeito 2ª pessoa do singular)