CHÁ COM O XÁ

Perto da hora do almoço, quando o sol estava de rachar as pedras do calçamento, seu Olegário chegou no bilhar de Tota Medrado, molhado de suor.

- Marcolino meu filho, me dê uma cerveja das que eu gosto senão eu vou explodir. O calor está demais. Parece que São Pedro tirou férias. Tem três meses que não cai uma gota de chuva. Não fosse o açude novo a gente lá de casa ia morrer seco feito bacalhau.

Depois de servir aquele que, na sua opinião, era o melhor cliente da região, Marcolino perguntou:

- Oh! Seu Olegário, naquela história do canivete que o seu amigo do irã persa lhe deu, o senhor não disse qual foi o favor que fez para ele.

- Não é irã persa, Marcolino, é que hoje Irã é o que antigamente tinha o nome de Pérsia.

- Mas sim, me conte como foi que essa história começou.

- Faz muito tempo isso, menino. Eu era muito amigo do cônsul da Pérsia no Recife. Mais de uma vez ele veio passar final de semana aqui na fazenda junto com mais dois que também eram cônsules de outros países e numa dessas visitas ele me disse que tinha arranjado com o rei de lá para eu fazer uma visita ao país deles. Que eu ia ficar encantado com tudo o que iria ver por lá, porque todo mundo pensa que lá só tem areia, camelo e gente vestida dos pés à cabeça com aquele mundão de pano.

Aí eu disse a ele que naquela ocasião eu não tinha dinheiro bastante para fazer uma viagem desse tamanho, aí ele disse, como de fato, que eu não iria gastar nem um centavo, mas tinha a exigência de não levar Maria, porque pelos costumes de lá, mulher decente só sai de casa para ir rezar na igreja.

Aí eu falei com Maria e ela disse: vá só mesmo meu velho, porque eu não gosto de sair de casa e tenho muito medo de andar de avião. É melhor você ir só para eu não dar vexame nas casas dos outros.

Na semana seguinte fomos para lá e esse meu amigo perguntou se eu queria conhecer o Xá, que era como chamavam o rei deles. Claro que eu aceitei na hora porque um negócio desse não tem como recusar.

- E foi ele quem lhe deu o canivete, foi?

- Não, menino. Espere a história para você poder entender. No dia que fomos no palácio, o rei estava cumprimentando um monte de gente, aí quando eu fui apresentado e ele soube que eu era brasileiro, fez questão de me convidar para tomar um chá com ele.

- E o senhor fala a língua deles, é?

- Não, menino, era o rei quem falava português e olhe, muito melhor que muita gente letrada daqui viu?

Aí ele disse que se eu estivesse desocupado e pudesse dar a honra da minha companhia a ele, depois daquela audiência, a gente ia para outro lugar no palácio para tomar o chá tradicional que só é servido a grandes celebridades.

Eu confesso que foi a primeira vez que fiquei encabulado com tanta cortesia vinda de um homem fino e educado como aquele rei.

Aí eu fui levado para uma sala grande toda forrada com ouro e pedras preciosas.

Os tapetes no chão eram cada um mais bonito do que o outro.

Antes que eu pudesse me acostumar com tanta riqueza, o rei chegou vestido com a roupa típica da tribo dele, sentou-se numa almofada no chão, puxou outra e me pediu para eu sentar junto dele.

Pegou uns copos de cristal todo trabalhado à mão e ele mesmo serviu o chá para mim e para outro homem sentado na frente dele.

Na sala maior do que esse bilhar, só tinha nós três e os empregados, porque só gente da nobreza podia entrar ali e como o cônsul não era nobre, teve que ficar me esperando do lado de fora do palácio.

Conversa vai, conversa vem, ele me apresentou ao homem já chegado na idade que era tio dele. Esse homem, seu Abdel, era dessas pessoas que a gente faz amizade na hora quando é apresentado e que com o desenrolar da conversa parece que a gente se conhece desde a infância.

Aí ele me perguntou se eu conhecia alguém que negociasse com ferro, porque ele estava com muita dificuldade para tocar a sua indústria, porque o fornecedor dele, chamado Boris nunseiquelá vitch, lá dos confins da Rússia, fez alguma coisa fora do combinado e tinha sido mandado para o presídio na Sibéria.

Para felicidade dele, nessa época eu era muito amigo do presidente da CSN e não tive dificuldade de arranjar um navio cheiro, até a boca, de lingote de ferro para mandar para lá.

Ele queria me pagar uma comissão, mas eu não aceitei, afinal era parente do rei que ficou meu amigo e não me custou nada além de dois dedos de prosa com as pessoas certas.

Aí, porque eu não tinha aceitado nada em pagamento, ele me mandou o canivete, feito por ele mesmo, dentro de uma caixa toda cravejada com pedras.

- E o senhor ainda tem amizade com esse pessoal, seu Olegário?

- Não. Infelizmente, não. Era gente muito educada que fazia gosto de conversar com eles, mas depois teve uma revolução por lá, botaram o rei para fora do país e eu perdi o contato. Até falei com o meu amigo cônsul que se o rei quisesse passar um tempo refugiado na minha fazenda eu teria o maior prazer em servi-lo, mas ficou por isso mesmo...

- E o canivete seu Olegário, cadê ele?

- Essa é uma boa pergunta, porque faz muito tempo que eu não vejo. Deve estar perdido na fazenda, no meio da bagunça que Zarolho faz com aquelas tralhas no galpão de ferramentas e eu não estou com a febre do rato nem comi sarapatel de cachorro doido para perguntar a ele onde está alguma coisa no meio daquela sucursal dos infernos.

GLOSSÁRIO

Febre do rato = leptospirose

Siderúrgica – Companhia Siderúrgica Nacional CSN – Volta Redonda/RJ

Xá da Pérsia = S. M. Mohamed Rezã Shãh Pahlavi