Causos de Coribe - O assassinato do cachorro provedor de alimentos
Causo 14 do livro "Casos Inacreditáveis de Coribe", de Marcos Macedo Barros.
|| Como era a vida de pessoas humildes na zona rural tempos atrás? ||
Tratava-se de uma época de grande dificuldade financeira no município de Coribe/BA. Presenciar pais de família chorarem de tristeza ao ver seus filhos com fome era algo muito comum naquele tempo. Quando estava na estação das mangas, a fruta saciava a fome de muitas pessoas, que dificilmente encontravam outra coisa para comer.
Às vezes, comiam farofa de língua-de-vaca ou de cariru, mas não se encontrava esses alimentos na quantidade suficiente para alimentar todos da casa, que não eram poucos, já que cada família costumava ter uma renca de filhos, uma média de dez por casal.
As caças do mato eram ótimas para a ocasião. No entanto, o difícil era pegá-las. Muitos até tentavam com umas espingardinhas de chumbo, as quais usavam bucha feita manualmente raspando cascas de pé de mamona.
Ocorre que, apesar da facilidade de achar as buchas, o chumbo era difícil de encontrar...
Mas ainda bem que essa dificuldade de caçar não existia para Simões Filho, uma vez que tinha um cachorro muito bom de caça.
Simões era um rapaz solteiro, filho de Dona Barra e Seu Araci que, junto com eles, não tinha nada para comer senão os caititus, tatus e teiús que frequentemente pegava com seu cachorro.
Devido a isso, a família dele quase não passava fome, mas de toda forma, o nome de sua mãe combinava bem com a vida deles, uma vez que enfrentavam, literalmente, uma barra pesada.
Referente à facilidade para com as caças, infelizmente não acontecia o mesmo na casa do seu Paramirim e dona Conceição Almeida, que passavam fome quase todos os dias e não tinham um garnisé sequer para comerem.
Certa vez, Simões presenciou uma cena muito triste na casa do seu Paramirim. Foi de dar dó! Os filhos dele clamavam por alimentos, podendo ser até farinha que estava bom. Diziam que só não comiam terra porque não tinha jeito. Naquele momento, aquele pai de família chorou e reclamou da vida. Disse que se pudesse morrer para não ver aquilo morreria.
Sua esposa, dona Conceição, passou a mão na cabeça dele e disse:
– Fique tranquilo moço, as coisas ainda vão melhorar!
Simões, vendo aquilo e com seu cachorro lá fora na sombra, não hesitou em convidá-lo para uma caçada:
– Vamos ali pegar uns caititus Paramirim?
O convite foi aceito de imediato e com felicidade por Paramirim!
Eles foram lá no mato e o cachorro, muito esperto, indo sempre na frente pegando o faro de animais, logo correu atrás de um caititu e botou no chão.
Estava realmente infalível aquele animal. Não perdia uma carreira. Aquele porco do mato era dos grandes. A felicidade de Paramirim foi tremenda por saber que naquele dia seus filhos iriam dormir de barriga cheia.
Na volta, o cachorro deu uma carreira atrás de um tatu, que entrou num buraco e ele o acuou, latindo ferozmente. Já estava perto da casa de Paramirim, o qual foi lá buscar correndo um enxadão velho que tinha.
Ele e Simões conseguiram arrancar o tatu do buraco e acabaram de chegar levando ambas as caças. Cada um com uma e o cachorro sempre na frente farejando.
Ao chegarem no destino, Dona Conceição os recebeu alegremente e as crianças também. Com muito bom gosto foram tratar as caças. A comida para aquele dia estava garantida! Paramirim agradeceu enormemente Simões e disse-lhe:
– Agora você leva um dos bichos pra você comer lá com seus pais.
O agrado foi recusado pelo rapaz, dizendo:
– Não, pode ficar com os dois pra você! Eu pego outros aí. Meu cachorro é muito bom pra isso.
Ele botava fé que seu cachorro sempre conseguiria pegar alguma caça do mato, motivo pelo qual arranjava com frequência algum negócio nele, mas não fechava, pois bastava ir no mato que a caçada ocorria com sucesso total.
A fama do animal era tão boa que Seu Lapão ofereceu nele uma vaca parida que, naquela época, valia muito dinheiro...
Neste ponto, propositadamente, faz-se necessário mudar de assunto! É que, às vezes, é preciso mudar de estrada para chegar no destino almejado...
Dito isto, distante dali, porém no mesmo povoado, morava um senhor chamado Cotegipe, que tinha o costume de vender rapaduras.
Araci já devia a ele três rapaduras e pediu para seu filho Simões ir lá correndo buscar mais uma fiado.
Naquele dia, eles iriam derrubar uma roça, razão pela qual o rapaz não podia perder tempo no trajeto. Por fim, pediu para dizer a Cotegipe que, se não arrumasse dinheiro por aqueles dias, o pagaria com alguns dias de serviço.
Bem-mandado, o jovem foi trotando. Estava com cinco contos de réis no bolso em razão de ter trabalhado muitos dias para vários donos de terras.
Chegando lá chamou, mas Seu Cotegipe não quis o atender. A mulher dele, Dona Ibotirama, veio recebê-lo na porta, dizendo que seu marido não estava em casa naquele momento.
Simões Filho, rapaz esperto, disse que ouviu a fala dele e insistiu em querer conversar com o camarada. Ela foi lá dentro e Cotegipe, irritado, disse:
– Esse menino de novo aqui? O pai dele me deve umas rapaduras aí e ainda não me pagou... Pagar o que deve ninguém quer... agora ficar pedindo as coisas... manda ele ir embora!
Dona Ibotirama, então, foi falar com Simões, que ouviu a conversa direitinho e falou para ela:
– Chama ele lá mulher... uai, ele não é homem não? Está com medo de que? Eu vim foi pagar ele e levar mais rapaduras, mas não é fiado não, é no dinheiro.
A mulher ficou fazendo a intermediação do diálogo entre os dois, já que Cotegipe não quis falar diretamente com Simões.
Após dizer umas poucas e boas, o rapaz gastou o dinheiro que tinha no bolso para pagar a dívida do pai e levou não somente uma, mas duas rapaduras. Apesar de sua atuação honesta e transparente, Cotegipe ficou com raiva dele devido às verdades que falou.
Feliz por ter limpado a honra do pai e ansioso para contar a ele sua excelente atuação, Simões foi embora correndo. Todavia, devido à enrolação de Cotegipe, acabou demorando mais do que o esperado por Araci, que já estava o esperando no meio do corredor com um chicote fedegoso!!!
Ao chegar, foi recebido com pauladas nas costas. Seu pai lhe deu um puxão, as rapaduras caíram no areão e a taca comeu no lombo de Simões.
Disse Araci dando as chicotadas:
– Eu falei pra você não demorar seu menino lerdo!
Após a surra, o rapaz não conseguiu se expressar para contar o que havia feito e o motivo da demora, sendo obrigado a ir logo para a roça atrás do pai e com o cachorro na frente dos dois. Trabalharam o dia todo, de sol a sol, sem trocarem uma palavra!
Dona Barra, por sua vez, foi no local da surra e pegou as rapaduras, raspando-as com faca para retirar a terra. Não poderia desperdiçar aquele alimento, já que as coisas estavam muito difíceis.
Dias após esse fato, o cachorro de Simões Filho foi dar umas voltas durante o dia, provavelmente à procura de cadelas no cio.
Em seu percurso, acabou passando nas terras de Cotegipe, que o avistou e deu-lhe um tiro de espingarda. Foi uma vingança por não ter gostado das palavras que o dono do animal disse na casa dele no dia em que, além de ter pago a dívida do pai, ainda comprou mais rapaduras pagando à vista...
Baleado, o cachorro saiu andando troncho, passou por debaixo da cerca daquelas terras e caiu na beira do corredor. Ali ele morreu solitariamente!
No mesmo dia, Simões sentiu falta do seu animal de estimação, que sempre estava em sua casa ao anoitecer. Ficou preocupado, pois aquele cachorro era seu salvador da pátria, garantindo seu sustento e de sua família naqueles tempos difíceis. Passou a noite todinha sem pregar os olhos de preocupação.
No dia seguinte, perdeu uma manhã de serviço para sair à procura do cachorro provedor de alimentos. Após longa caminhada a pé, o encontrou morto na beira do corredor, ao lado das terras de Cotegipe.
Desesperado e chorando, saiu por ali para saber como se deu aquela morte. Seguindo os passos do animal, ou melhor, os sangramentos deixados no chão, conseguiu localizar o local exato do tiro, devido às marcas de sangue.
Como o local foi nas terras de Cotegipe, concluiu Simões quem o havia matado!
Sem pensar direito, correu para sua casa e pegou sua espingarda e foi atrás do seu novo inimigo. Estava com o sangue nos olhos, já que sua maior força para prover alimentos para dentro de casa foi retirada de sua vida injustamente por Cotegipe.
Chegando próximo da casa do seu desafeto, antes de passar pela porteira, este já tinha o avistado com a espingarda na mão e, ciente do que havia feito, imaginou a tragédia que poderia sofrer se não saísse às pressas dali.
Pelos fundos, Cotegipe saiu caladinho e pediu Dona Ibotirama para não dar pistas do seu paradeiro.
Ao chegar na casa, perguntou Simões à mulher:
– Tem umas contas pra eu acertar com Cotegipe... cadê ele?
Ela foi logo avisando que seu marido ainda não tinha chegado da roça e não sabia por onde andava.
Simões ficou rondando aquelas bandas até o anoitecer, mas não encontrou seu inimigo. Saindo dali rumo à sua casa, no caminho deu de cara com o cachorro de Cotegipe. Sem parar para pensar, deu-lhe um tiro de vingança, matando-o.
Mas ainda não havia acertado as contas, já que aquele cachorro não tinha a mesma serventia do seu: vivia cabisbaixo e desatento por onde andava.
No dia seguinte, o rapaz fez questão de demonstrar seu plano de vingança, mandando recado para Cotegipe através de Dona Ibotirama, ameaçando que, ao encontrá-lo, não iria nascer mais capim no local do encontro.
Com medo e fugindo o tempo todo da mira do valente rapaz, Seu Cotegipe resolveu dar parte dele, ou seja, fez uma queixa contra Simões Filho na delegacia do município.
A carta chegou para Araci, que queria ir em seu lugar. Simões não deixou seu pai ir de jeito nenhum. Quis ir ele mesmo!
Foi a pé e o trajeto era em torno de 40 km, levando várias horas para chegar na sede de Coribe. Lá chegando, encontrou com o assassino de seu cachorro no mercadão da cidade, que estava conversando com amigos e conhecidos.
Ao vê-lo, Simões proferiu de imediato uns xingamentos, fazendo-o passar vergonha no meio do povo, chamando-o de muitos nomes pesados e, no final, o convidou para ir logo para a delegacia.
Cotegipe foi, porém, mantendo-se distância, pois estava tremendo de medo do dono do cachorro falecido.
Na delegacia, o delegado, conhecido como Doutor Conquista, colocou os dois frente a frente e ficou controlando o debate.
No momento em que Cotegipe ia falar, Simões não o interrompia, mas a recíproca não é verdadeira, pois este era sempre interrompido por aquele quando começava a falar, razão pela qual o doutor pediu inúmeras vezes para Cotegipe ficar quieto e aguardar Simões concluir o raciocínio.
Em um determinado momento, Simões declarou que o cachorro era tão bom que havia arranjado nele uma vaca parida, a qual valia muito dinheiro. Nesse momento, Cotegipe o interrompeu dizendo:
– Menino mentiroso! Quem é que vai dar uma vaca parida num cachorro daquele? Só se tiver doido! Um cachorro que não valia nem o que comia!
O rapaz, por ter sido interrompido novamente, o chamou de velho mal-educado. Dr. Conquista, mais uma vez, deu uma bronca em Cotegipe em razão da intervenção não autorizada.
A autoridade policial gostou da declaração de Simões e perguntou-lhe mais detalhes, como, por exemplo, o nome da pessoa que ofereceu a vaca.
O filho de Araci respondeu de imediato:
– Foi Seu Lapão Doutor!
Naquele momento da audiência, uma coincidência impressionante aconteceu: seu Lapão ia passando a cavalo bem na frente da delegacia! Estava indo para a roça.
Foi imediatamente chamado à presença do delegado para confirmar a história. Após a autoridade lhe fazer a pergunta se realmente tinha oferecido a vaca em troca do cachorro, antes de começar a falar, Cotegipe foi mais rápido na resposta e abriu a boca para zombar daquele negócio, dizendo:
– É claro que é mentira!
Essa intervenção indevida o fez receber novamente uma bronca pesada do Dr. Conquista que, em seguida, passou a palavra para o Seu Lapão.
Lapão disse que de fato ofereceu a vaca parida no cachorro e Simões não quis fechar o negócio e que depois se arrependeu de ter feito a oferta naquelas condições.
Interrogado pelo delegado sobre o motivo do arrependimento, ele disse que deveria ter oferecido mais, pois o cachorro merecia um valor maior, por ser muito bom de caça.
Lapão acrescentou que muitas pessoas estavam passando fome na região e quem tivesse um cachorro daquele estaria com o problema resolvido.
Após tais declarações, Doutor Conquista encerrou a audiência e condenou Cotegipe a pagar a Simões uma vaca, um bezerro e trezentos contos de réis, sob pena de ser preso.
Desta forma, restou concluído que, no julgamento do assassinato do cachorro provedor de alimentos, o delegado, valendo-se de um sistema inquisitorial em detrimento do acusatório, através do qual concentrou em si as funções investigativa, acusatória e julgadora, proferiu sentença oral, obviamente sem direito a recurso, dando a causa merecidamente a favor de Simões Filho.