Causos de Coribe - Apagando fogo na manga de capim

Causo 12 do livro "Casos Inacreditáveis de Coribe", de Marcos Macedo.

 

|| Causo de fazendeiro. Prezado leitor, leia no final os motivos que me levaram a colocar este causo no livro (relações com o Direito) ||

 

Trata-se de uma justa lição dada por Paulo Afonso, conhecido como Seu Afonso, em seu desafeto Teixeira de Freitas, chamado na região como Seu Teixeira.

 

Seu Afonso é, sem dúvidas, o homem mais valente do município e o caso aconteceu por volta de 1985. Ele é daqueles que não leva desaforo para casa. Certa vez disse:

– Para mim, tanto faz correr bala como não correr que não está acontecendo nada!

 

Acresce que, a depender da ofensa, a resposta de Afonso se daria com base num princípio que ele mesmo criou ao dizer:

– Para mim a conta é a mesma...

 

Isso significa que se Afonso está trabalhando e alguém está lhe desrespeitando, ele vai tomar medidas proporcionais ao agravo. Nesse sentido, caso a resposta dele cause lesões em quem caçou a confusão, “para ele a conta é a mesma”!

 

Esclarecida como se dar a reação de Afonso a uma injusta ofensa, vamos ao caso.

 

Trata-se de um conflito que se iniciou porque Seu Teixeira estava infringindo ordens ao ficar atirando em codornas na manga de Afonso.

 

A casa do conhecido Paulo Afonso fica de frente a essa manga e, na caradura, Teixeira dava tiros naquela propriedade e não se importava se o dono estava por lá ou não.

 

Um belo dia, passou um punhado de chumbo na cumeeira daquela casa ... Teixeira atirou do alto do morro e Afonso estava por lá no exato momento do disparo!

 

Antes de relatar a consequência dessa grave ofensa, faz-se necessário fazer alguns esclarecimentos.

 

Primeiramente, cumpre esclarecer que, previamente ao desferimento do referido tiro, o gado de Afonso já vivia assombrado da presença daquele invasor.

 

Quando ele estava atirando por ali, os animais se recusavam a descer para o curral, com medo. A conduta invasiva estava gerando problemas na propriedade.

 

Outro ponto importante é que a última vez que o caçador de codornas havia sido reclamado ocorreu quando estava caçando naquelas bandas e, coincidentemente, deu de cara com Afonso, que estava lá com o cabresto para pegar o cavalo.

 

O papo entre os dois foi o seguinte:

Afonso: – Marrapaz, já tem caído fogo nessa manga minha aqui umas duas vezes com você aqui dentro... Marrapaz, eu não já te falei que não aceito ninguém caçar aqui dentro?

Teixeira: – Moço, não é eu que estou botando fogo na manga sua aqui não! Você vai caçar quem está botando fogo em sua manga, porque não é eu não... quando dou um tiro numa codorna aí, se começar a fumaçar eu pago a fumaça!

Afonso: – Mas eu já te falei que eu não quero você aqui dentro!

 

Com essa última fala, não abriu margem para qualquer exceção! Independentemente de Teixeira pagar o fogo ou não, o dono das terras não o queria lá dentro e ponto final!

 

Naquele momento, Afonso estava com o cabresto dobrado na mão e o invasor saiu dali passando por baixo do arame feito uma fera e disse:

– Eu estou caçando aqui é um cabo de enxada...

 

A resposta do proprietário das terras veio de imediato:

– Aqui não tem cabo de enxada aqui não!

 

Teixeira, irritado, desceu por outras mangas e soverteu lá para baixo, sumindo das vistas de Afonso.

 

No dia seguinte, ainda no período da manhã, ocorreu o referido tiro de espingarda que passou por cima da cumeeira da casa do fazendeiro.

 

Afonso já sabia quem era, mas foi conferir mesmo assim e viu que Teixeira estava bem lá no alto olhando na direção de sua casa com a espingarda na mão, como se estivesse clamando por um confronto armado.

 

O problema entre os dois se agravou naquele momento!

 

Afonso entrou em sua casa, pegou o revólver já carregado, encheu o bolso de balas e saiu para o terreiro novamente. Mas já era tarde, pois Teixeira já tinha subido a ladeira e sumido de vista. A longa subida se dava até o assentado, que ficava um pouco distante dali.

 

Afonso saiu na cola do invasor, mas apesar de ter subido ligeiro, quando venceu o alto, não mais o viu.

 

O jeito foi dar uns tiros para cima e ver se a raiva pegava uma carona com as balas. Com esse ato, estava fazendo um convite ao seu desafeto para um confronto direto.

 

Cogitou Afonso:

– Se ele vir... porque ele está com a espingarda né... e eu estou com mais de dez balas no bolso... então se ele vir, eu escondo detrás dumas pedras dessa aí e deixo ele descarregar a espingarda. Quando ele descarregar a espingarda eu pego ele. Nem que eu fico escondido nessas serras por aí, mas eu faço serviço com ele hoje! E faço mesmo... não estou nem ligando, porque eu estou trabalhando e ele está me desrespeitando, pra mim a conta é a mesma!

 

Naquele instante, um rapaz, comparsa de Teixeira e chamado Eunápolis, saiu de um montueiro de matos e disse a Afonso:

– Você está doido moço... sou eu que estou aqui dentro moço. Você está doido!

 

Eles, então, desenrolaram uma breve conversa nos seguintes termos:

Afonso: – Uai, você está aqui também moço? Você está aqui com quem?

Eunápolis: – É com Teixeira.

Afonso: – Fala com aquele bandido que sai aqui que estou convidando ele!

 

O comparsa de Teixeira, com medo, entrou no mato alto e saiu correndo.

 

Naquele meio tempo, chegou por ali o irmão de Seu Afonso, chamado Castro Alves, que o perguntou:

– Que foi moço? O que foi mesmo?

 

Respondeu-lhe o fazendeiro:

– É um bandido que estou esperando aqui!

 

Paulo Afonso, na companhia de Castro Alves, foi caminhando na direção do assentado e deu mais alguns tiros para cima e, após alguns instantes, viu os invasores saírem correndo bem distante dali. Palavras do contador do causo:

– Foi a derradeira vez que eu vi o rasto dele aí dentro!

 

Todavia, ainda não se tinha certeza se a resposta dada serviu ou não de lição, ou seja, se Teixeira havia mesmo exemplado.

 

Nesse sentido, dias depois da carreira que o caçador de codornas levou de Afonso, um fogo pegou bem na manga que foi o palco da confusão entre eles e veio da propriedade de um cara chamado Abaré. Na zona rural, é comum o fogo saltar de uma manga para outra.

 

Apressadamente, Teixeira correu lá e pagou o fogo! Estava com medo de Afonso pensar que foi ele que causou o incêndio. Foram muitos baldes de água que ele buscou num tanque, daqueles cavados por trator de esteira, que tinha ali por perto. O cara estava assombrado!

 

Além da água que Teixeira borrifou lá na manga, também pegou um cassete de madeira e ficou batendo nas moitas de capim para o fogo não se espalhar.

 

De longe, escondido atrás dumas pedras, Afonso apreciava alegremente o êxito da lição aplicada.

 

Isso comprovou que a confusão deu resultado positivo para o dono da terra, pois o invasor não pisou o pé lá dentro mais não.

 

Entretanto, ameaças foram proferidas indiretamente, uma vez que, dias depois, um tal de Mucuri disse a Afonso que Teixeira andou dizendo num outro povoado o seguinte:

– Eu quero ver ele passar na frente da minha casa!

 

Sem cisma, pouco tempo depois, Afonso nem alembrando estava e passou no corredor em frente à casa de Teixeira, que saiu lá de dentro com uma espingarda na mão, mas não teve nenhuma reação.

 

Passados alguns meses, entrou na manga de Afonso um gado de Cícero Dantas, o qual mandou seu trabalhador, chamado Irará, buscar o rebanho.

 

Irará foi na propriedade de Afonso para combinar dia e horário. Foi lhe ordenado que, no dia seguinte, o gado tinha que sair por baixo e não por cima. Por baixo significava que passaria em frente à casa de Afonso e, por cima, pelo asfalto. Ficou combinado então dessa forma.

 

O problema é que Cícero foi por cima e tirou o gado por lá, deixando a cancela aberta, justamente a que dava saída para o asfalto.

 

Para complicar a situação, em razão de ter separado seu gado do outro, Cícero vacilou e deixou fechado um colchete que daria acesso para o gado de Afonso voltar para a manga onde estava.

 

Tal vacilo poderia gerar um grave prejuízo para o dono da propriedade, visto que se alguma vaca saísse para o asfalto, poderia ser atropelada, o que o fez ir lá reclamar os culpados.

 

Afonso, porém, foi na casa de quem havia conversado, ou seja, Irará. Chegando lá, ao iniciar a bronca, a conversa foi a seguinte:

Afonso: – Moço, você tirou o gado lá por riba?

Irará: – Não foi eu não! Foi Cícero que tirou o gado por lá.

Afonso: – Eu falei pra você falar com Cícero que era pra tirar o gado por cá, pois eu iria separar do meu. Tirou por lá e deixou minha cancela aberta e o gado estava do lado de fora! E se faltar gado meu aí “vai ter pra nós”... se faltar um gado aí vocês vão ver como é que vai ficar bom pra vocês. Vocês tinham que tirar o gado lá comigo lá dentro, com minha ordem, porque o gado estava junto com o meu... passar e largar a cancela aberta pro gado passar pra fora e partir pro asfalto?

 

Afonso concluiu a conversa dizendo que:

– Se faltar um gado meu lá é você e ele... e primeiro é você!

 

Nesta frase, percebe-se uma clara aplicação do Direito Civil no tocante à responsabilidade subsidiária ao invés da solidária, pois a obrigação imposta coercitivamente foi dirigida aos dois responsáveis, porém o devedor principal, caso faltasse alguma cabeça de gado, seria Irará. Este não pagando, passaria a obrigação a Cicero, como numa fiança ao invés de aval.

 

Feita essa consideração, acresce que quando Afonso finalizou a determinação unilateral das responsabilidades de Cícero e Irará, estava ali por perto o Seu Teixeira, que morava lá encostadinho. Veio de lá dando razão para Afonso, dizendo:

– Você está certo! Tranca aquela cancela lá e bota um cadeado que eu quero ver eles passarem.

 

Assim, Teixeira veio dar razão para Afonso, o que comprovou que a dura lição resultou na conquista plena da respeitabilidade mútua entre eles, uma vez que, a partir de uma carreira armada, o fazendeiro conquistou o respeito do invasor de suas terras.

 

FIM.

 

 

Motivos de ter colocado este causo no livro:

a) Nunca aja com violência!!! Teixeira foi querer apavorar Afonso e acabou apagando fogo na manga de capim, sendo que nem foi ele que causou o incêndio;

b) Um pouco dos problemas que fazendeiros enfrentam devido à falta de responsabilidade de vizinhos;

c) Conceito de responsabilidade civil subsidiária e solidária;

d) O direito de resposta proporcional ao agravo (art. 5º, inciso V, da CF);

e) Mesmo sem saber os pormenores da lei, muitas pessoas praticam diversas ações no cotidiano que podem servir de analogia para explicar conceitos do Direito;

f) Não se deve fazer nada em propriedade alheia quando não se tem autorização. 

Marcos Macedo (Cantor)
Enviado por Marcos Macedo (Cantor) em 10/02/2023
Reeditado em 13/02/2023
Código do texto: T7716245
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