SAMBA DESENCAMINHA

Para o nordestino raiz, qualquer festa com música para dançar, é samba.

- Vai ter um samba na casa de Zé Pedro, de madrinha Lia, no sábado de hoje a oito... um aviso dessa natureza, qualquer um ficava sabendo que no próximo sábado, na casa de José Pedro, filho da madrinha Maria José, aconteceria uma festa com música para se dançar.

Aqueles mais tradicionais, verdadeiros baluartes dos bons costumes, jamais permitiriam que suas filhas moças solteiras ou seus filhos homens noivos ou comprometidos pelo namoro sério, comparecessem a tais festejos, por entenderem que o bate coxa e o esfregado dos casais no samba desencaminha qualquer um que tenha sangue nas veias.

Mas isso, hoje em dia, não existe mais porque a televisão se encarregou de avacalhar as tradições através das novelas onde tudo é permitido e na sem-vergonhice do troca-troca de marido dos artistas, sejam eles homens ou mulheres.

Luzia, de dona Quitéria, tinha acabado de completar dezessete anos quando o Circo Real se instalou no largo do matadouro velho. Tiveram que capinar tudo aquilo porque, nem o dono do terreno, nem a prefeitura tiveram coragem de passar uma roçadeira nas barbas de bode.

Quando a caravana do circo desfilou pela cidade, havia entre os artistas um mágico em cima do caminhão que uma hora tirava a cartola da cabeça com pombos dentro dela e na vez seguinte era coelho. O cabra era danado porque repetiu a mágica várias vezes sem que ninguém desse fé de como ele fazia.

Era um rapaz alto e magro, com os cabelos prateados na altura dos ombros, vestindo fraque e gravata borboleta que despertou em todas as moças, na mesma hora, o desejo de ter um homem lindo daqueles para chamar de seu.

Zé Pedro, de madrinha Lia, viu na presença do circo a possibilidade de arranjar algum dinheiro, chamou os artistas do circo para o samba, contratou a zabumba de Mestre Carrinho do pife e cobrou entrada.

Quando Luzia soube que os artistas do circo estariam presentes, endoidou o cabeção e só descansou quando a mãe deu o dinheiro da entrada.

A casa estava apinhada de gente, mas o mágico só tinha olhos para Luzia e, antes que a noite acabasse, eles já estavam namorando.

Na semana seguinte, quando o circo se foi embora, Luzia anoiteceu, mas não amanheceu em casa.

Ninguém sabia dar notícia do paradeiro dela nem do circo.

Dona Quitéria ficou feito louca procurando pela filha, mas parecia que ela e o circo tinham virado fumaça. A menina ainda era de menor e por conselho que recebeu dos vizinhos, ela foi dar parte no comissariado, mas a polícia que hoje não tem recursos, imagine naquela época. Foi feito o B.O., mas o caso ficou por isso mesmo...

Anos depois, chegou a notícia de que tinham visto Luzia numa dessas festas de peão de boiadeiro, mas que ela estava muito vistosa, bem vestida com o crachá de convidada especial, motorista para dirigir a caminhonete importada, demonstrava em tudo que fazia estar cheia do dinheiro, porque depois que foi abandonada pelo mágico numa pensão no interior do Mato Grosso, ela tinha virado moça de programa de gente grã-fina.

“Por causa do samba, o mundo virou um lupanar”, como diria o Coronel Venâncio, de saudosa memória.

GLOSSÁRIO

Barbas de bode - capim Cyperus compressus

Desse fé = tomar conhecimento

Lupanar – prostíbulo da Roma antiga

Pife = pífano; espécie de flauta de madeira, geralmente taboca.

Zabumba – Forma sincopada de Terno de Zabumba, conjunto musical com 2 pífanos, caixa e zabumba; instrumento de percussão com sonoridade grave.