Causos do Velho Jorge - nº 8 - O EXCOMUNGADO
Jovino era mesmo desnaturado. Sujeitinho inconveniente. Faltava com o respeito a todas as pessoas, fossem elas recatadas donzelas ou beatas velhinhas. Na boca dele, ninguém prestava. Abusava de tudo e de todos. Até de Deus. Suas atitudes desagradavam àqueles que eram obrigados a conviver com ele no dia-a-dia do pequeno povoado. Gente muito devota, a da nossa região, não aceitava que alguém andasse por aí contando piadas maldosas, envolvendo os santos da Igreja e difamando os padres.
No eito, ninguém gostava de trabalhar ao seu lado, principalmente, se ameaçava chuva, pois tinham medo de que caísse um raio na cabeça do pobre diabo e que outros fossem também atingido pelo castigo, que, na opinião da maioria, seria bem merecido.
Nas festas religiosas, que sempre se realizavam nos arredores, ninguém gostava de lhe fazer companhia, ainda mais se aquele enérgico padre italiano, o Monsenhor Graciano estivesse presente. Ninguém queria ser visto pelo padre ao lado de sujeito tão pecador. As senhoras e as donzelas não o cumprimentavam em nenhuma oportunidade e a criança tinha as cabecinhas cheias de histórias horríveis de lobisomem e mula-sem-cabeça que, intencionalmente, envolviam o infeliz Jovino. Passavam por ele trêmulas, mas curiosas, sempre procurando algum traço que revelasse as formas monstruosas que era capaz de assumir. Procuravam ver se os seus pés eram mesmo arredondados, se seus dentes era afiados como os de um cão, se o seu corpo era cabeludo como o de um lobo e, ainda, se suas unhas eram afiadas como as de um animal carnívoro e selvagem.
De sua parte, Jovino pouco ligava para a reação das pessoas ao seu modo esquisito de ser. Ignorava tudo e continuava com suas conversas atravessadas, sem demonstrar nenhum desapontamento, quando era evitado por algum conhecido. Ia convivendo com aquela gente supersticiosa, sem maiores conseqüências, apesar de alguns incidentes.
Um fato marcante foi num mês de maio, na celebração do casamento do filho de um sitiante da região, que, diga-se de passagem, não era flor que se cheirasse. O casamento, na opinião da maioria, seria um verdadeiro fracasso, pois a moça, a despeito de já ser bem madura e não possuir muitos dotes físicos, era de família muito honrada e um doce de pessoa, enquanto o rapaz, a considerar pela família, não merecia o mínimo de confiança.
Segundo as más línguas, o próprio pedido de casamento quase fora um desastre. O rapaz, cuja família inteira tinha a fama de amigos do alheio (seu pai e os dois irmãos mais velhos já haviam sido presos por causa de alguns furtos), tinha ido falar com o pai da moça a respeito do casório.
O pai não vinha gostando muito de ver sua filha namorando um rapaz de família tão desconceituada, mas, por absoluta falta de opção, não querendo ver a filha solteira pelo resto da vida, acabou consentindo na união dos dois.
Entretanto não deixou barato: quando o rapaz chegou e, a custo, expôs a sua intenção, depois de muito café e broas de fubá, o velho olhou-o com autoridade e fuzilou: Vou aceitar o pedido, apesar de saber que na sua casa todo mundo rouba. Não pense que me esqueci daquela leitoa que me levaram há dois anos atrás.
O rapaz quase caiu de tanta vergonha. Mãe e filha recolheram-se aos seus quartos e o pai da moça despediu-se do jovem, dando por encerrada aquela conversa.
Agora estavam prontos para a cerimônia, se bem que o que mais entusiasmava a todos eram os doces, frangos e capados que seriam servidos aos convidados.
Do arraial até a paróquia mais próxima, era uma distância de dez quilômetros e arranjaram um caminhão para levar os noivos, seus familiares e aqueles que desejavam assistir à cerimônia do casamento. Muitos ficaram. Uns porque tinham de ir preparando a festança, outros, na esperança de irem beliscando alguns petiscos. Alguns jovens, aproveitando a empolgação dos pais, iam dar uma beliscadinha nas moças com quem sempre sonhavam.
Jovino não perdia uma festa. E mais ainda, a oportunidade de poder ir passear na cidade sem ter que pagar passagem. Subiu no caminhão, para desagrado de muitos, e já foi logo soltando os cachorros. As pessoas que estavam sentadas ao seu lado, por educação, ouviam suas lorotas, torcendo para que chegassem logo ao destino.
Na igreja, foram todos se acomodando nos bancos, enquanto eram feitos os preparativos para a celebração. Uns rezavam, ajoelhados, outros conversavam em voz baixa. Alguns permaneciam calados, absorvidos no som de uma rabeca que ensaiava os acordes da marcha nupcial. Jovino, inconveniente como sempre, conversava alto, chamando a atenção das pessoas, peregrinando pela igreja, olhando para cada um dos santos. Quando passou em frente ao cofre, colocado aos pés do santo padroeiro, para fazer figura, sacou do bolso traseiro a surrada carteira e, abrindo-a, começou a procurar uma nota de pequeno valor. Ao perceber que o santo olhava fixamente para a única nota de algum valor que trazia consigo, voltou-se para a imagem e disse, escondendo a carteira: - Pode tirar o olho. Se quiser uma dessas, é melhor ir dar duro no cabo da enxada.
Foi um zunzum geral na igreja e todos acharam um absurdo a brincadeira, embora soubessem que não se podia esperar outra coisa daquele pecador. Tomara que ficasse só naquilo, pois o danado era capaz de fazer coisa pior.
E fez. No ponto mais solene da celebração, Jovino começou a sentir um aperto muito grande na barriga. Uns nós nas tripas. Talvez por causa de uns três litros de leite e meio bolo que comera antes da viagem. Foi segurando, foi segurando... A igreja estava lotada e, mesmo que quisesse sair, certamente, não daria tempo de chegar do lado de fora.
Enquanto isso o padre: - Silvão, você aceita a Maria das Graças como sua legítima es....
Pôooooo!!!
O estrondo ecoou por toda a igreja. Os que estavam à frente do porcalhão, viraram-se para ver quem era o autor de tamanho desrespeito. Os que estavam ao seu lado tiveram de tapar o nariz.
O padre parou por um instante e fuzilou Jovino com seu olhar e o coitado, de olhos fixos na imagem do padroeiro, no altar-mor, continuava parado como se fosse uma estátua.
Terminada a celebração, todos se preparando para a volta, Jovino, um pouco vexado, mais pelos gases que continuavam a importuná-lo que por vergonha do papelão que fizera, acomodou-se num dos bancos da carroceria do caminhão e esperava que todos subissem.
Foi então que apareceu o padre, vermelho como um peru e começou a dizer uma série de palavras difíceis, desconhecidas de todos os presentes, mas que pela expressão do seu rosto só podiam ser xingamento. Exortou a todos pedindo que não andassem ao lado de um excomungado da Igreja, pois era o que acabara de fazer ao pobre Jovino: tinha-o excomungado.
O povo, que nesse tempo tinha a palavra do padre como lei, fê-lo descer do caminhão e que se quisesse voltar, que fosse a pé.
O pobre desceu sem pestanejar e saiu andando, meio sem rumo, pela estrada …
Quando o caminhão com os noivos e convidados chegou ao arraial, ele já estava lá, muito senhor de si, comendo sem parar e falando como uma maritaca.
Muitos acharam que aquilo era coisa do diabo. Outros afirmavam terem visto um lobo passar por eles no caminho. Os mais moderados, entretanto, diziam que o infeliz viera de carona em algum carro que trafegava pela estrada naquela noite.
Certeza ninguém tinha.