Duas casas, duas vidas: As diferentes moradias das famílias do Senhor Fontes
Duas casas, duas vidas
Muitas vezes a gente se depara com o velho ditado “uns com tanto, outros sem nada” e ele não é expresso à toa.
A vida dos filhos do Senhor Fontes pode ser resumida dessa forma.
Relatos que comparam as duas famílias que ele mantinha na sua propriedade dão a entender que a distância social entre uma e outra era visível.
A primeira família, a oficial, era mantida na Casa Grande com tudo do bom e do melhor. Com a assistência de empregados e seguranças, pois era ali também onde ele morava. Mas a casa onde ele alojou a segunda família clandestina, bastarda e preta, era a bem da verdade uma choupana.
Mas aquilo não era estranho para as pessoas da época. Na verdade acreditava-se até que ele fazia um favor de assumir os filhos bastardos. Mantendo todos vivendo na sua propriedade, coisa que muitos proprietários de terra na época não faziam. Muitos, pelo contrário, expulsavam e abandonavam suas amantes grávidas, muitas vezes, inclusive, fazendo coisas piores.
Mas o Senhor Fontes tinha um motivo para manter a família negra no mesmo local da família branca. Os mesmos relatos bastam para que a gente lembre que na família branca não haviam filhos homens capazes de ajudá-lo nos negócios.
Ele havia gerado um filho homem e três filhas mulheres com a Dona Emília, mas o filho nascera com um problema que deformara-lhe a cabeça, deixando- a muito pequena em comparação com o corpo e a cabeça de outras crianças. Era portanto, doente mental, o chamado retardado na época. Não conversava nada com coerência, de modo que apenas uma das filhas, a mais velha ( chamada por todos de Diva) era quem lhe ajudava a tomar conta da propriedade. Inclusive vestia-se e comportava-se como homem. Coisa que não era bem vista na época e para evitar maledicências, quando ela completou a idade de 18 anos o Senhor Fontes escolheu um rapaz das redondezas e fez seu casamento . O rapaz em questão era um dos seus ajudantes e também passou a viver na fazenda e a ajudar a cuidar das terras.
Mas, voltando a falar das situações distintas em que viviam as duas famílias, precisamos relembrar que falávamos desse assunto no início do capítulo em questão e então passemos para as descrições das duas moradias.
A Casa Grande (como era chamada pelos trabalhadores e vizinhos) era uma casa bem feita. Quatro águas. Com alpendres largos e depósitos para armazenar os produtos que eram retirados das plantações e das criações de animais. Havia uma espécie de celeiro onde ficavam os arreios, as ferramentas de trabalhos, carroças, todo tipo de insumos e instrumentos para a lida com o gado e as lavouras. Era uma casa antiga. Feita pelos antigos donos, os avós adotivos da Dona Emília.
Também contam que havia um moinho de cana-de-açúcar puxado a cavalo e ali perto um tacho de cobre enorme usado para fazer a rapadura. Haviam também vários barris pra guardar o melado e outros tantos vasilhames de armazenar água. Pendurados num canto ficavam as espigas de milho secando para serem usadas como sementes.
No outro lado da casa ficava o galpão/depósito onde eram colocados as folhas de fumo pendurados no teto e encostados numa parede negra os chamados “ bulinhotes” de fumo curtidos. Mais ao fundo do quintal havia uma casa de farinha completa e era ali também que ficava o enorme fogão a lenha da Casa Grande.
No quintal havia ainda um galinheiro grande, porém apenas cercado. Era onde ficavam as galinhas, os perus e os patos. Haviam inclusive alguns urubus criados ali no meio das aves, como era o costuma da época. Diziam que afastavam as doenças do galinheiro.
Na propriedade também haviam porcos e ovelhas criados soltos nos pastos mais próximos, e apenas o gado, as mulas e os cavalos eram levados para os pastos mais distantes do perímetro da casa grande.
O curral, junto com o depósito de estrumes e outros adubos, ficava mais perto da choupana onde a Negra Josefa fora colocada para morar. Assim, era mais ali que os filhos dela, um total de 6 meninos e uma menina, brincavam.
Tudo que era produzido na fazenda para destino comercial ficava ao redor da Casa principal. Desse modo, a casa era sempre bem abastecida, sempre bem freqüentada e bem guarnecida. Sempre tinha alguém ali para ajudar a fazer as coisas: a carregar peso, a distribuir toda aquela produção em determinadas necessidades que fossem surgindo, como carregar uma carroça, retirar água das cisternas para levar para a lida na roça ou para os afazeres de dentro de casa.
Enfim, sempre tinha alguém ali nas imediações da casa Grande para tomar conta e dar assistência ao patrão e sua família.
A casa grande era, portanto, uma construção realmente vistosa para época. Dentro dela haviam todos os móveis que era necessária haver na época em uma casa rica. Mas as pessoas ali não tinham muita preocupação com mobiliário requintado. Apenas o básico era necessário para se viver e isso já era muito conforto.
A Dona Emília apesar de muito doente, era uma mulher muito prendada e ainda contava com a ajuda da negra Josefa para cuidar das crianças, então tinha tempo para fazer seus bordados e ornamentar a casa. Desse modo, a sua casa era sempre muito bem vistosa e muito bem arrumada.
Ela não só costurava como bordava muito bem e tudo era muito bem feito e primoroso. Haja vista que a Dona Emília era filha da elite e naquela época as moças eram bem preparadas para casar-se. Muito embora ela não fosse a filha biológica e sim adotada pela família legítima da propriedade, ainda assim, ela era a única herdeira deles porque assim foi escolhida. E como tal fora muito bem educada e preparada para ser a dona da casa tão logo se casasse. Por essa razão, a casa principal era sempre muito bem decorada e convidativa.
Já a casa onde vivia a família preta, como já foi falado anteriormente, não passava de uma choupana. Era na verdade uma construção erguida com os próprios punhos pelos trabalhadores da propriedade. A conhecida casa de taipa. Uma mistura trançada de madeira e cipó, tapada com barro pisado, amolecido com água e jogado à mão nas paredes para fechar os espaços entre o emaranhadas de vara e cipó. Depois coberto com palha da palmeira adicuri numa espécies de telhado de improviso.
Móveis alí não tinha. Tudo ali era feito de vara. Incluindo a cama e as prateleiras onde eram colocadas as panelas, pratos e vasilhames onde guardava-se as comidas.
O Colchão era feito de junco seco num grande saco de pano de estopa costurado à mão. E o chão era de terra batida e apesar de tudo ser muito limpo e assiado, de longe se via que ali morava a pobreza e mais nada.
E como a casa era um pouco retirada, ficando distante da casa grande mais ou menos meia légua, quando pequenas as crianças da dona Josefa costumavam acompanhar a mãe para ir para casa grande, de modo que acabavam ficando na Choupana muito pouco durante o dia. Mas, quando cresceram começaram a andar sozinhos e a se espalharem pela propriedade. E sempre que viam alguma aglomeração de homens lá estavam aquelas crianças, também ali presentes.
Mas o que importa mesmo tratar aqui neste capítulo é a diferença de tratamento e de vivência das duas famílias do mesmo homem. O homem que tinha uma grande capacidade de adquirir recursos financeiros, de fazer o dinheiro girar, crescer e prosperar, de plantar e colher e ter sempre muito e sempre mais. Sempre comprando e adquirindo mais terras...
Esse mesmo homem mantinha suas duas famílias de modos diferentes. Uma com grande abundância e a outra na escassez completa da extrema pobreza.
E dizem que até os próprios trabalhadores se encarregavam de fazer a diferenciação de tratamento entre as duas famílias. Conta-se, inclusive, a história de uma jaqueira que havia perto do curral. Dizem que quando estava na época de colheita da jaca e os filhos pretos do Senhor Fontes tirava uma jaca que fosse, alguém ia correndo denunciar na Casa Grande.
As roças de milho eram vigiadas. As lavouras de batata, feijão, fumo, e até o galinheiro eram vigiados. Fosse o que fosse havia sempre um vigilante para ver se os filhos bastardos estavam lá a consumir mais do que deviam.
De todo modo, o mais importante a ressaltar aqui é “como é possível que alguém que era pai de duas famílias, conseguisse tratá-las de formas diferentes, afinal, as pessoas sempre têm a impressão de que filho é filho".
E, independente de quem sejam as mães, mas, na verdade, a divisão social de classes tem suas próprias explicações para a forma como as pessoas viam as relações e conviviam naquela época.
E, por incrível que pareça, o Senhor Fontes era ainda até muito admirado por dar “guarida” ao próprio sangue bastardo. Vá entender o pensamento do senso comum da época.
Continua...
Adriribeiro/@adri.poesias