Como diria o seu Pedro: só vence aquele que não briga

Contava meu avô, o senhor Pedro Florindo de Paula, que em seus tempos de Rede Ferroviária Federal sempre trabalhou com todo tipo de gente, destacava sempre, que os problemas para lidar com pessoas diferentes são muitos, são criadas de forma diversa, vem com “um treinamento diferente do seu”. Isso aliado à tensão do convívio profissional às vezes ocasionava desavenças e discussões, que segundo ele, foram muito potencializadas quando parou com aquelas coisas que considerava mundanas, frívolas (bebidas e bailes, por exemplo) e se tornou chefe de trem, sendo o responsável pelo trem, pelos seus tripulantes e passageiros durante a viagem.

Sempre foi um homem correto com suas obrigações, mas de início, como ele mesmo narrava, tinha começado a percorrer o caminho das bebedeiras, bailes e até de alguns namoros, mas logo observou, em seus colegas de trabalho mais antigos, que eles estavam praticamente se aposentando, mas ainda ocupavam a mesma função na qual haviam iniciado a carreira, que muitos não possuíam mais família e moravam em pensões, nem casa para morar tinham.

Dessa observação realizada saíram dois raciocínios: O primeiro é que não estava seguindo o conselho deixado por seu pai, de que ele procurasse fazer algo para a velhice enquanto era novo, para não pagar o preço amargo de “estar cansado e não possuir forro macio e aconchegante para descansar”. O segundo provinha do ditado que sempre repetia: “pedras que rolam não criam limo”, no caso especifico do meu avô o “limo” não era algo que envelhecesse, ou que prendesse a pedra (pedra = pessoa), mas representava os bens adquiridos, fossem eles materiais, intelectuais, ou espirituais, dessa forma, se uma pedra rolasse muito não conseguira adquirir limo, em síntese, a estabilidade e perseverança no plano traçado nos levará a aquisição dos valores que são buscados.

Como sempre ele me dava lições, com todo um teor moral, na tentativa de me educar para vida, não com educação formal, que, aliás, ele muito prezava e cobrava dos netos, assim como o fizera com os filhos sem obter sucesso, para que estudassem e tivessem uma formação que lhes desse um bom emprego, lhes garantindo assim, um futuro mais tranquilo.

Hoje consigo entender que as suas lições buscavam me prover conceitos basilares, para nortear minha vida em todas as suas áreas: como responsabilidade, fazer o que certo (mesmo sem ter a aprovação dos outros), não ceder às pressões, ao conforto momentâneo que os prazeres nos trazem e principalmente: que tudo na vida tem um preço, tudo que almejamos é possível, desde que tenhamos disposição a pagar o preço exigido.

Na questão sobre os atritos que são ocasionados da convivência entre seres humanos diferentes, sempre me alertou sobre os riscos de agir sob o efeito de emoção, raiva ou, orgulho, falava muito sobre isso quando eu resolvi praticar artes marciais, já era adolescente e no lugar que morávamos, naquela época, haviam muitas confusões ocasionadas por brigas de rua entre jovens. As disputas entre seres humanos para ocupar a posição de alfa, foi muito difundida, em minha época de adolescente, anos 90, por filmes de artes marciais e ação norte americanos, motivo pelo qual fui trilhar um caminho nas artes marciais, como tantos outros jovens fizeram naquele tempo.

Porém, como quase tudo na vida dos adolescentes, foi uma tendência passageira, mas meu avô sempre estava ali me falando do seu tempo na Rede Ferroviária, onde muitas vezes as pessoas até chegaram a ofendê-lo, mas ele deixava passar, pois um homem só deveria tomar atitude mais gravosa para proteger sua vida, ou de sua família, diferente disso, seria valentia e atitude de gente violenta.

Um dia cheguei a casa dele em um sábado à tarde, minha avó estava lá à beira do fogão terminando de assar um bolo de fubá, tomando seu costumeiro chimarrão. Meu avô saiu da sala, logo que cheguei, veio até a cozinha, juntei as mãos, pedi sua benção, com a mão direita segurou minhas mãos unidas e me abençoou. Sentou-se a mesa e disse:

-Roma tá pronto o bolo de fubá?

Pergunta à qual minha avó respondeu afirmativamente. E meu avô continuou:

- Polaco sente aqui para comer um bolo e tomar cevada?

Sentei de frente para meu avô, minha avó pôs a mesa. Sempre me chamaram de polaco, pois nascerá com os cabelos clarinhos, mas com o passar do tempo foram escurecendo, hoje estão ficando platinados, tudo muda. Servimo-nos, minha avó continuou sentada na caixa de lenha tomando seu chimarrão, meu avô por sua vez, me questionou:

- Tua mãe disse que você está treinando luta?

Respondi que sim e antes que pudesse contar mais detalhes da atividade ele continuou:

-Vou te dizer o seguinte: não acho proveitoso você trabalhar a semana inteira e gastar seu dinheiro com isso. Além do mais, valentia não faz bem a ninguém, dela só podemos ganhar cadeia ou cemitério.

Fiquei contrariado com a afirmação dele, porém, era exatamente o que eu estava fazendo, meu objetivo não era o esporte, o que eu realmente buscava era ser igual aos bocós que o cinema nos vendia, poder me defender e impor minha vontade por força aos outros, em suma, se pudesse com certeza brigaria. Era uma coisa lógica, levando em consideração o histórico familiar, o lugar onde vivia, os amigos que possuía e tudo mais. Mas eu não me atrevia a contrariá-lo, nem mesmo depois de adulto, sempre senti que lhe devia muito. Ele continuou pelo caminho que seguia:

- Quando trabalhei na Rede, se eu fosse igual aos meus colegas de trabalho, ou mesmo aos meus irmãos, que não levavam desaforo para casa, não teria crescido no emprego, acredito que nem o emprego tinha mantido, teria arrumado muita confusão desnecessária e pior que isso, poderia ter acontecido o que aconteceu com o José Balduino e com o Mário dos santos.

Colocou mais cevada com leite na caneca, pegou mais um pedaço de bolo, perguntou se eu queria comer mais e continuou:

- O Zé, como nós chamávamos na Rede, era um homem branco, de cabelos pretos, magro de estatura mediana, que gostava de uma pinga, era valente, brigava com todo mundo, sempre gritava e ofendia as pessoas com palavrões. Teve um dia que deu um tapa na orelha de um passageiro, que assim como ele, estava bêbado, tivemos que segurá-lo para que não acontecesse pior.

- O homem era terrível! Brigava com todo mundo, eu já era Chefe de Trem, mas por uma questão de fazer o que era melhor sempre, administrava a situação sem repassar aos superiores, até por que fama de delator é uma coisa terrível, mas também por que questionariam minha capacidade de chefia. O fato é que eu já me preocupava quando olhava a escala e via que ele estava na minha tripulação, sabia que teríamos uma viagem agitada.

- Em uma dessas situações tive que chamar atenção dele. Juntou-se com um grupo de passageiros e começou a beber no fundo do vagão, falavam palavrões, faziam uma algazarra. Fui até lá, determinei que ele fosse para junto do maquinista, pois estava sem condições de trabalhar, quanto aos passageiros, pedi que cessassem aquela folia, pois se não acatassem minha ordem, pararia o trem na próxima estação e os entregaria à Polícia.

- Tudo resolvido no vagão, segui até a máquina para falar com o bendito do Zé. Mas quando cheguei lá, ele me ofendeu com tanta coisa feia, falou da minha família, inclusive de minha falecida mãe. Eu carregava um cassetete de borracha, que levávamos para se defender de algum passageiro agressivo, coloquei a mão sobre a arma e minha vontade era arrebentar aquele jaguara de bordoada, mexer com a família alheia, com minha mãe. Aí me veio à mente o que aprendi com meu pai: Parei e pensei: se eu for guiado pela raiva, pelo orgulho e pelo prazer que teria em ensinar uma lição para aquele sem vergonha, animal de roupa, vagabundo, vou perder o emprego, lá iria minha vida, minha família e quem saberia dizer o que mais poderia acontecer?

- Somente disse a ele: Zé! Quer continuar desse jeito? Uma hora encontra um pior que você e daí o resultado pode ser uma desgraça, mude esse teu jeito, destino de valente são dois: cadeia ou cemitério.

- Olhou bem para mim, com a fala arrastada, continuou com as ofensas, dizendo que ele não tinha medo de homem, que não era filho de pai assustado e que só respeitava homem se tivesse três bolas, do contrário não.

- Passado o porre, no outro dia, me pediu desculpas. Eu, muito ofendido, somente disse a ele: lembre-se do que te disse ontem, valente tem dois destinos: cadeia ou cemitério.

- Passaram-se alguns meses após esse fato, nunca mais trabalhei com o Zé. Certo dia, chegávamos à estação de Videira no inicio da noite, já vimos de longe uma aglomeração de gente e a Polícia bem na frente dos alojamentos usados para pernoite dos ferroviários.

- Fizemos o desembarque dos passageiros, conferimos tudo e desembarcamos, pois pernoitaríamos ali naquela noite, para seguir viagem de volta para casa no outro dia. Fui até o local onde estava à polícia, para ver o que havia acontecido, quando cheguei lá, vi o corpo do Mário dos Santos caído de costas no chão, com dois tiros no peito, com a gaita de boca que sempre tocava em sua mão direita.

- Você sabe o que aconteceu polaco?

Respondi negativamente, mas em minha cabeça pensei no Zé. Meu avô continuou:

- O que eu disse naquele dia para o Zé, aconteceu, parecia que eu tinha adivinhado o futuro. O homem que estava morto, Mario dos santos, era um homem negro, alto, forte, usava um bigode que chegava até o queixo, era muito ligeiro, antes de entrar na Rede era lutador em um circo, se criou no circo. Buscou o emprego, assim como eu, para ter estabilidade e cuidar da família, trabalhava como foguista, ficava alimentando com carvão a máquina.

- Um dia antes de estar ali morto, caído no chão, vinham de Marcelino Ramos, com destino a videira, o Zé e o Mário na mesma tripulação. Ninguém sabe o motivo da briga, mas o maquinista era o Reinaldo, meu cunhado, casado com a Paulina, minha irmã, contava ele que o Zé, como de costume, tinha tomado umas pingas e começou a discutir com o Mário, que era homem de poucas palavras, não demorou para o Zé falar da família inteira do outro homem, fazer referência à cor da pele dele, juntado a tudo isso, começou a traçar uma origem alternativa para a família do Mário.

- Só que dessa vez ele errou o pulo, o Mário largou o que estava fazendo e deu uma surra no abençoado do Zé que foi de criar bicho. Diz o Reinaldo, que o Mário dava um tapa com a palma da mão na cara do Zé e antes que ele pudesse se recuperar já tomava outro com as costas da mão que voltava, pulava de um lado para o outro e lá vinha mão, pé, cotovelo, joelho, o Zé nem sabia direito de onde vinham as bordoadas, o Mário corria o pé no Zé, o derrubando tipo saco de batata no chão e dizia: “Levanta seu estrume pra cair de novo!”

- Deixou o coitado com as costas mais mole que a barriga, teve que sair carregado.

- Chegaram à Videira e foram para o alojamento, mas o Zé depois da chegada sumiu e não foi mais visto.

- Como era de costume o Mário sentou no chão, do lado de fora da porta do alojamento e ficou tocando gaita de boca. Ele olhou e viu que o Zé vinha andando apresado na sua direção, mas a confiança que tinha no seu braço, fez com que não se preocupasse, ficou ali sem se mexer.

- O Zé chegou a uns cinco metros dele e parou, ficou encarando. Ele parou de tocar sua gaita e perguntou se a surra não tinha sido o bastante, se por um acaso, ele queria mais uma passada. Mas o Zé só gritou: “Vou te ensinar que na cara de homem não se bate Guaramputa.” Sacou um revolver calibre 22, deu dois tiros no peito do Mário, que fez menção de levantar, mas caiu ali mesmo de costa. O Zé fugiu naquele momento, mas depois foi preso.

- Cheguei a vê-lo depois que deixou a cadeia, conversamos um pouco, ele se desculpou comigo pelo passado, pois éramos amigos, me contou do arrependimento que ele tinha, do sofrimento da prisão e do remorso guardado no peito por ter matado uma pessoa. Nunca mais o vi depois desse dia.

- O resumo disso tudo meu neto é que não existe orgulho na morte, ou na cadeia, também não existe briga que você ganhe brigando, perde todo mundo, só ganha àquele que não briga, a vitória está em evitar qualquer atrito.

Ficamos mais um tempo ali conversando, logo eu saí em direção a minha casa, não entendi nada do que ele disse naquele momento, mas como diz um amigo: “Deus protege os idiotas.” Ele me protegeu muito. Hoje com mais vivencia, com mais experiência e com uma ponta do que parece ser um resquício de sabedoria, concordo plenamente com meu avô e sempre me valho daquela canção da banda IRA, chamada “Receita para se fazer um Herói”, onde sabiamente, a conclusão acaba com o verso “serve-se morto”.