Os boitatás, faca em cruz, Cresdiospai e fogo no trem
A história das pessoas comuns é fascinante. Quando pensamos em história, somos remetidos a fatos e datas relacionados a grandes eventos, grandes personagens, temas de uma disciplina escolar estática. Nunca pensamos que tudo e todos têm sua história, são vidas cheias de experiências, vivências, cultura, significado, que nunca serão encontradas nos bancos de dados convencionais.
Ouso pensar, que a história é discurso, está vivo, dinâmico, pronto a nos imergir em suas camadas de significância, pronto para ser ouvido, reproduzido, evitado, liberto ou interdito. É imortal, atemporal e imaterial, segue deixando gravada, para sempre, a essência daqueles que já passaram por esse nosso pequeno mundinho.
Sempre tive interesse pelas histórias fantásticas, de vida, de moral, daquelas pessoas comuns que conheci, sempre exerceram um fascínio inenarrável sobre mim. Meu avô paterno, Pedro, não gostava nada das histórias fantásticas contadas por minha avó, mas possuía as suas, que eram sempre reais e com um fundo de moralidade, traziam sempre lições, que buscavam aconselhar, apontar um norte, em suma, moralizar a vida dos outros.
Lembro-me que contava incansavelmente uma história de quando ele tinha a idade de 13 anos, contou-me que estava em uma tapera, feita de taquara, coberta com as folhas da mesma planta e rebocada de barro, onde se alojavam, durante os períodos de tempo que passavam no meio do mato cortando lenha. Esse trabalho era realizado para fazendeiros e pessoas com mais posses. Demoravam dias nesses locais, derrubando, cortando e empilhando lenha por metros estéreis, recebiam a paga pelo trabalho realizado por metro de lenha, ou por empreitada.
Num dia específico, estavam ele e o seu pai, meu bisavô, trabalhando em um desses locais, muito distante de tudo, quase no final da tarde, quando já estavam praticamente encerrando o dia de trabalho, o machado, que meu avô usava, soltou-se do cabo e atingiu seu tornozelo, fazendo um corte muito grande e profundo. Seu pai o socorreu, fez um curativo com panos que tinha a mão, estancando dessa forma o sangramento e com algumas ervas tentou entorpecê-lo para acalmar a dor.
Durante a noite, meu avô teve febre e como se não bastasse, começou a cair uma grande tempestade, a estrutura frágil quase era levada pelo vento, a água corria dentro da pequena tapera. Contava ele, que nessa noite, meu bisavô o aconselhou a crescer, sair dali, arrumar um emprego melhor, para poder se aposentar um dia, que fizesse algo para sua velhice enquanto era jovem e dessa forma, nunca corresse o risco de ficar naquela situação para o resto de sua vida. Conselho que meu avô ouviu. Com 18 anos se alistou, serviu o Exército por cerca de um ano, arrumou um emprego inicial fazendo valetas na fundação de uma grande empresa de União da Vitória, estado do Paraná, logo após conseguiu uma vaga de emprego na Rede Ferroviária Federal, onde começou de baixo como Turmeiro - alguém que fazia comida e arrumava os alojamentos dos ferroviários – voltou a estudar e conseguiu chegar a Fiscal de Turismo se aposentando com 30 anos de serviços prestados. Sempre que contava essa história exibia a cicatriz, com cerca de 10 centímetros, no tornozelo direito, cicatriz que não possuía a marca de pontos, fechou assim sem medicina formal.
Tornou-se um homem versado em estudos religiosos, fazia parte da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, mais popularmente conhecida como Mórmon. Contava-me muitas histórias com fundo moral, querendo me ensinar algo, sei que se preocupava com meu futuro, então buscava me ensinar com esses exemplos, da mesma forma que seu pai fizera quando ele era só um garoto. Por sua inclinação religiosa não dava crédito a cultura e folclore popular, assunto preferido de toda nossa família, via isso como uma besteira sem tamanho.
Minha avó, em um dia qualquer , em tom de vingança, pelo descredito que ele demonstrava aos assuntos considerados por ela sagrados, como por exemplo, a figura de São João Maria, um monge que passou pela nossa região no inicio do século XX, que recebia dela e de muitos o título de santo, mas era alvo da descrença de meu avô. Contou-me, que ele já havia passado por um grande aperto e só se livrou por causa das coisas que aprendeu com o tio dela, um homem que foi seguidor do Monge João Maria e por esse contato tornou-se, em sua época e lugar, um grande benzedor.
-Éramos recém-casados, seu avó era mais simples, não abusava tanto das coisas, faziam já cerca de três anos que ele trabalhava como ferroviário. Naquela época os trens não eram velozes demorava-se muito tempo nas viagens, não era como hoje, que com os carros e ônibus, vamos daqui até Paula Freitas em meia hora, naquele tempo demorava-se 2 horas no mínimo, imagine em uma viagem mais distante.
- Eles viajavam a noite inteira, para chegar a locais mais distantes, às vezes não levavam passageiros, os vagões eram exclusivamente para carga, quando acontecia algum problema, tinham que se movimentar de um vagão a outro, muitas vezes subiam em cima dos vagões para fazer suas rondas e resolver algum problema que acontecia.
- Seu avô saiu no sábado à tardinha para a viagem, que deveria se iniciar às 19 horas, chegariam a Marcelino Ramos, no Rio Grande do Sul, somente no outro dia de manhã, tínhamos sua mãe recém-nascida e mais dois filhos, que infelizmente foram levados, ainda crianças, pelo sarampo. Nos despedimos dele, que saiu com certa pressa, pois nunca gostou de se atrasar.
Minha vó pediu que apanhasse um pouco de lenha. Saí, fui até o galpão, apanhei a lenha, voltei, entrei na cozinha, depositei a lenha na caixa de lenha ao lado do fogão, coloquei um ou dois paus no fogo e sentei-me sobre a caixa de lenha, para terminar de ouvir a história de minha avó, que em tom baixo continuou:
- Viajavam a cerca de 5 horas já, passava da meia noite, nesse dia contavam histórias, daquelas cabeludas, sobre todo tipo de coisa ruim, mas sem respeito, fazendo chacota, abusando com o que deve ser deixado quieto, acredito que até umas pingas tinham tomado, pois seu avô bebia naquele tempo, hábito que perdeu depois de se converter. Como o trem carregava somente vagões de carga deveriam ter bebido sim, viajavam em nove homens, um deles o irmão de seu avô, Antônio.
-Passavam por um lugar de mata, longe de qualquer cidade, conversavam sobre uma figura medonha, o boitatá, ou cobra de fogo, mas para quem conhece bem a história, sabe que não tem nada de cobra, o boitatá, ou boitatás aparecem na forma de duas bolas grandes de fogo. Diz que nas noites de lua cheia, principalmente de sexta para sábado, ou de sábado para domingo eles aparecem. O pior da história é que são dois viventes amaldiçoados que viram bolas de fogo e saem assustando aquelas pessoas sem sorte que as encontram em seu caminho, ou perseguem aqueles que abusam deles. Essa maldição acontece quando um compadre e uma comadre resolvem ter um caso. Dessa aberração que os dois cometem surge a maldição.
- Mas como disse, estavam falando e fazendo chacotas do boitatá, abusando com o ser medonho, dizendo que não existia nada disso, que o desafiavam a aparecer e riam muito de tudo aquilo. Começaram a ouvir estalos, que vinham da parte de fora dos vagões. Foram saindo um para cada canto, menos o maquinista e o foguista, para ver de onde vinha o barulho. Estavam todos do lado de fora, uns em cima dos vagões, outros agarrados nas laterais, olhavam e não viam nada.
- Passavam por um pinheiral muito grande, quando os vagões se iluminaram, eles não acreditavam no que viam, duas bolas de fogo enormes seguiam o trem, uma de cada lado, pulando de copa em copa dos pinheiro. Ficaram olhando um tempo, pois não conseguiam acreditar no que seus olhos enxergavam. Uma das bolas pulou no último vagão, era coisa de outro mundo, um fogo branco azulado, cada vez que saltava soltava uma quantidade imensa de faíscas que se espalhavam pelo ar. A outra bola de fogo se adiantou e pulou um pouco mais a frente.
- Quando perceberam, que estavam sendo castigados pelas besteiras que disseram, pelas blasfêmias, pelo abuso cometido, entraram em desespero e quem sabia rezar, rezava, quem não sabia chorava. As bolas de fogo começaram a vir na direção deles, que rapidamente se trancaram dentro da locomotiva.
- Parecia que os boitatás desejavam queimar o trem, apareciam nas janelas, à claridade aumentava lá fora, como se estivessem envolvendo o trem inteiro em seu fogo amaldiçoado. Todos rezando sem parar, mas nada adiantava. O barulho do tilintar do fogo era ensurdecedor.
-Seu avô desmerece muito essas coisas hoje! Mas o que salvou todos eles naquela noite foi uma simpatia ensinada por meu tio, àquele que te falei que andou com São João Maria. Meu tio era um homem muito sábio e bom. Teu avô lembrou-se de segurar duas facas em cruz e repetir nove vezes o Crendiospai, pediu para que os outros fizessem também, como nada adiantava e como chamamos por Deus somente na hora da morte, começaram todos a repetir o ritual, à medida que repetiam a simpatia, a claridade, lá fora, diminuía, chegando ao ponto em que todos tinham realizado as nove repetições, fazendo com que a claridade sumisse e junto com ela as duas bolas de fogo, que por pouco não incendiaram o trem com eles dentro.
- Seu avô não gosta de falar disso, nega e se souber que te contei ficará muito bravo, mas a verdade é que ele foi salvo pelas simpatias, que agora chama de besteira. Não aprendeu que o que levou a esse acontecimento foi à total falta de respeito, que naquela noite, eles tiveram com coisas muito além do nosso entendimento. O irmão dele, o Antônio, não nega a história e confirma para quem quiser o acontecido naquela noite de viajem.
Minha avó terminou o relato, eu permaneci por mais algum tempo conversando com ela e logo segui para minha casa. Ela sempre aparentava sentir uma tristeza quando contava suas histórias, pois acreditava no que relatava, porém era impedida de acreditar naquilo que tinha de mais caro: suas crenças e cultura. Após a morte de minha avó, conversei com meu tio avô, seu Antônio, sobre o acontecido, ele me confirmou todos os detalhes narrados por ela e frisou a falta de crédito que meu avô dava ao fato. Completou que depois que o bicho vai embora perdemos o medo, mas que não deveria ser assim, pois ouvir dizer que algo existe é uma coisa, mas saber que existe é motivo bastante para temer e respeitar.
As histórias que compõem a cultura popular são ricas em significados, ensinam lições, transmitem os medos, pesares, valores e esperanças de uma sociedade, que mesmo dentro da oficial, aquela dos números, está à margem, não aparece nos livros de história, tem uma cultura própria, colorida, com seus sistemas de crenças, dogmas, conceitos e é reproduzida no boca a boca, de geração a geração.