Cruzei o Lobisomem na encruzilhada

A cultura humana sempre descreveu seres fantásticos, com poderes sobrenaturais, que se colocam patamares acima da humanidade, seja na cadeia alimentar ou na progressão espiritual. Acredito que seja uma busca inerente ao ser humano, procurando algo maior do que ele. Para que sejamos, dessa forma, situados do nosso lugar nesse universo, mas também, como nas sagas dos heróis, dar oportunidade ao homem (em sua imaginação, ou na realidade) de provar seu valor e toda sua natureza divina, vencendo o inexplicável, superior e desconhecido.

As estórias descritas por pessoas simples, que fizeram de alguma forma parte de nossas vidas no decorrer da jornada, nos sendo transmitidas como relatos verídicos de fatos vividos e experimentados, povoam o imaginário e o arcabouço de crenças populares repassadas durante os tempos de geração à geração, compondo, dessa forma, a cultura popular.

Lembro-me da infância, quando passava finais de semana no interior, em casa de meus avós paternos (Vó Jango e Vó Ana), apesar de meu contato maior ter sido como meus avós maternos, muitas coisas vivi com a família de meu pai.

Sempre nos domingos, ou sábados à tarde, como não possuíamos, naquele lugar, televisão, internet e toda a gama de distrações que temos atualmente, jogávamos “paleta”, um jogo simples, mas que atraía a atenção de todos. Fazia-se uma pequena pirâmide com três gravetos (que lembra muito aquela que se faz para jogar bete), que se uniam na parte superior pelas pontas. A uma distancia de aproximadamente 10 metros da pequena pirâmide de gravetos, marcava-se com o pé, ou com um pedaço de pau, uma linha, cada jogador se posicionava atrás dessa linha e recebia um pedaço de madeira, com aproximadamente 30 ou 40 centímetros, cada um jogava o seu pedaço de madeira em direção da pequena pirâmide de gravetos, aquele que mais se aproximasse dos gravetos, ou os derrubasse, vencia a rodada. Cada rodada ganha era marcada com um risquinho, no chão, ao lado do nome, ou da primeira letra do nome do jogador, quem vencia mais rodadas era o campeão.

Jogava-se muito esse jogo na casa de meu tio avô, de nome Lúcio, todos participavam, com exceção dele, enquanto jogavam, meu pai e o Sagaz tomavam uma pinga com limão e mel, ou mesmo pura. O Sagaz era genro de meu tio avô, casado com a Margarida (ao contrário de outro genro, já falecido, esse era calmo e cortês), eram dois caboclos (Sagaz e Margarida) viviam de pé no chão, fumando paieiros feitos de fumo de corda, enrolados em palha de milho seca, tomando mate e vivendo felizes em uma casinha de chão batido.

A paleta faz-me recordar de uma estória que se refere a meu tio avô, trata exatamente do motivo, pelo qual, ele não gostava e não participava da brincadeira. Sempre muito sério, nunca vi aquele homem sorrir, sentado em um toquinho de madeira a beira da porta da cozinha, contou um causo, que me enchera de medo. Quando criança saía com meus primos para apanhar pinhão, amoras, araçás e gabirovas pelas trilhas da mata que rodeava a propriedade, o causo envolvia exatamente nosso lugar de coleta e exploração.

Iniciou como sempre iniciava suas frases, dizendo:

-Éres! Não gosto desse jogo, por que jogava muito quando jovem, principalmente com um compadre meu, que depois de uns acontecimentos amaldiçoados, se afastou de mim e melhor que foi assim, para não acontecer uma desgraça.

Todos escutavam atentamente o senhor carrancudo e calmo contar os seus motivos para se afastar da paleta e do dito compadre, enquanto ouviam, saía uma gamela de milho cozido e mais um tanto de mate.

-Então! Eu era mais jovem, recém-casado com a Isalina, tínhamos somente o Lauro, ele tinha menos de um ano de idade e morávamos aqui mesmo. Batizamos o filho do Manoé, um vizinho próximo daqui, morava depois da sanga que temos aqui para baixo.

A sanga (córrego de agua pequeno) a que ele se referia, ficava a cerca de 800 metros da casa descendo em direção ao Rio Vargem Grande, eu e meus primos fomos até lá muitas vezes, seguíamos por um carreiro no meio do mato e chegávamos a uma tapera, sem telhado, que parecia ter sido, a muito tempo, incendiada.

-O resto da casa ainda existe, ou pelo menos, o que sobrou depois que pegou fogo misteriosamente. Mas o fato é que todos diziam que o compadre Manoé era um lobisomem, correndo pelas noites de quinta para sexta- feira atacando os galinheiros e as pessoas que cruzavam seu caminho.

Todos os presentes (meu pai, minha mãe, o Sagaz, a Margarida, eu e meus primos) ouviam o ancião com uma atenção e respeito que não veríamos hoje em muitas ocasiões, sendo que a atualidade promoveu uma inversão dos valores e os mais vividos, mais experientes e sábios são, para esse novo modelo social, aqueles que menos sabem, colocamos o conhecimento tecnológico acima da experiência vivencial.

- Bem! Numa quinta-feira, saí para levar um pouco de mel que havíamos coletado e trocá-lo na Vila por outros produtos. Era final de tarde quando saí daqui, a cavalo é perto, dá mais ou menos 1 hora. Chagando no armazém do Semkiw, fiz as trocas, me demorei um pouco jogando cartas e conversa fora com alguns amigos.

- Por volta das 11 horas da noite resolvi voltar para casa, peguei os mantimentos, ajeitei na garupa do malhado, montei e segui o caminho, a lua estava vistosa e cheia, dava para enxergar como se fosse quase dia. Passei pela frente do cemitério, logo depois pela descida assombrada da casa dos Cordeiro, pelo compadre Clotário, tudo apagado, pois aqui se dorme cedo e se acorda cedo também, logo à frente passei pela entrada da casa do Jango, tudo estava tranquilo, calmo e silencioso, não se ouviam nem os grilos.

- Um pouco mais a frente ouvi uivos, mais fortes, agudos e estridentes do que dos cachorros, um som meio rachado e logo em seguida ouvi latidos, uma confusão que vinha dos lados da minha casa, parecia que os cachorros brigavam, o uivo se distanciou e os cachorros continuaram a latir.

- Quando cheguei bem na encruzilhada, que fica entre a Estrada do Jararaca e da Vargem Grande, ouvi aquele uivo bem mais próximo, o malhado se arrepiou e ficou em pé sobre as patas traseiras. Quando olhei para o barranco, ao lado da entrada da minha casa, vi duas luzinhas vermelhas, como brasas, e logo, dentes muito alvos, pontiagudos em uma boca escancarada, como se sorrisse para mim, duas orelhas pontudas que miravam para o céu e uma carranca de cachorro (porém bem maior do que a cabeça de um cachorro normal) em um corpo que parecia de um homem, coberto por pelos negros e brilhantes, as patas dianteiras do desgraçado ficavam ao lado da cara, pois se apoiava nos cotovelos.

- Saltou do barranco bem na frente da porteira de entrada, se arreganhando e soltou um uivo forte e estridente apontando o focinho para lua. Meu cavalo estava amedrontado, mas quem rege o animal é o homem! Então segurei com energia as rédeas usando a mão esquerda e mantive o malhado firme! Com a mão direita peguei o açoite, feito de rabo de tatu, dei uma puxada na cara do encardido, voltando o açoite e acertando outra lambida na cara feia do bicho, bati nele duas vezes, bem na cara, fazendo uma marca de cruz. O desafortunado se encolheu e se contorceu de dor, virou as costa e garrou o mato, nem uivar mais uivou. Antes de continuar o meu caminho gritei:

-Amanhã vá buscar sal lá em casa!

-Dizem os mais antigos, que quando nos encontramos com um lobisomem, ainda mais se o enfrenta e machuca, tem que mandar buscar sal, por que ele é obrigado a fazê-lo em forma humana, daí se descobre quem é o encantado.

- Cheguei em casa, contei à Isalina o acontecido e fomos dormir, já era tarde. Na manhã seguinte tomávamos mate à beira do fogão, quando escutamos uma voz que disse:

-Oh de casa! Bom dia!

Perguntei:

-Quem vem aí? E a voz respondeu:

- É comadre Rosa.

-A Isalina foi até a porta e convidou a comadre para entrar, mas ela chegou só até a porta e disse:

-Não comadre! Não quero me demorar, só queria ver se a senhora não teria um pouco de sal para me emprestar?

-A Isalina disse que sim, apanhou um pote de sal e emprestou a quantia que a comadre pediu. Antes que ela saísse perguntei:

-Comadre como esta o compadre, tudo bem com ele? Ela respondeu:

-Está meio adoentado, saiu ontem à noite e andou caindo.

- Nos despedimos e ela foi embora. Mais ou menos uma hora depois saí de casa e fui visitar o compadre Manoé e a comadre Rosa. Cheguei e conversei com a comadre Rosa, que pendurava roupas, me disse que o compadre estava deitado, que era para eu entrar e ir direto ao quarto. Como a casa dele era parecida com essa, tinha quarto e cozinha separados por uma varanda, entrei direto no quarto e me surpreendi quando olhei para o rosto do compadre. Vi a marca do açoite em cruz! Quando percebeu a minha presença cobriu o rosto com as cobertas e ficou mudo. Tentei puxar prosa, mas durante cinco minutos não me respondia nada, só fungava, como animal ferido por debaixo das cobertas, me despedi então e fui embora. Depois desse dia nunca mais conversamos, muito menos jogamos paleta.

- Estava descoberto o segredo do meu compadre o maldito era um lobisomem! Mas o que mais me deixou com a pulga atrás da orelha, foi que descobri que essa imundice, fedida e encardida não se transforma só de noite não, quando você machuca uma fera dessas ela quer vingança. Depois disso muitas vezes estava no mato trabalhando, cortando lenha, fazendo erva e enxergava pelos carreiros, ou por detrás das arvores e arbustos o cachorrão preto me seguindo, até que disse pra ele, por que não sou filho de pai assustado:

- Doutra vez Manoé só te surrei, mas se você continuar me perseguindo, não vou te dar chance de se vingar, seu encardido! Vou te matar e acabar com tua sina desgraçada!

- Depois disso nunca mais vi nada, nunca mais ouvi os uivos nas noites de quinta para sexta-feira, nunca mais encontrei meu compadre ou minha comadre, muito menos o afilhado. Abandonaram a casa e sumiram sem deixar rastros. Algum tempo depois, numa noite, vimos à claridade do fogo que consumia a casa abandonada, mas deles nem sinal.

Nesse ponto, a noite já havia chegado, tínhamos que andar cerca de 500 metros até a casa de meus avós e no meio do caminho estava a encruzilhada da estrada do Jararaca com a da Vargem Grande. Saímos, passamos pelo local, um frio me correu pela coluna, mas nada vimos. Nunca mais descemos até a casa abandonada localizada depois da sanga e começamos a tomar cuidado quando apanhávamos as nossas frutas em meio da mata.