Sangue aos pés da cruz

Na localidade da Lagoa Suja, interior do município paranaense de Paula Freitas, morava meu tio avô, um homem alto, magro, de modos rudes e severos, nunca sorria, sempre com um punhal na cintura, chapéu e botas cano longo, casado com uma senhora de pequeno porte, magra e muito ágil, sempre com um lenço na cabeça e com calças por debaixo das saias (um costume de muitas mulheres do interior que conheci na minha infância).

Moravam em uma casa inicialmente de chão batido (depois o chão fora revestido com tijolos maciços), paredes de tábuas rústicas de pinheiro, telhado de telhas de barro, sem forração no teto, toda extensão da casa se resumia em uma cozinha (que contava com um fogão à lenha feito de tijolos maciços, uma mesa e um armário) saía-se da cozinha, pela porta dos fundos, direto em uma varanda e logo após vinha o quarto, banheiro não possuíam, somente uma casinha (chamada de patente) aos fundos da casa, para as necessidades fisiológicas, os banhos eram realizados em uma bacia de alumínio (em que eu cabia inteiro dentro com 10 anos de idade).

Viviam de galinhas criadas soltas pelo pátio, alguns porcos, uma horta bem surtidada de hortaliças (roça não faziam mais devido à idade avançada) e de uma pequena aposentadoria que um deles recebia pelo Fundo Rural. Caboclos que tomavam chimarrão quase o dia todo, sempre a par do fogão a lenha, ou sentados em torrinhas de madeira na porta da pequena cozinha.

Homem de poucas palavras, sempre carrancudo e de personalidade severa teve uma vida difícil e sofrida, da qual não conheço muitos detalhes, mas na entrada da sua cozinha ficava uma cruz feita de madeira de cedro, (que se mantinha sempre viva), segundo relatos dos parentes mais próximos, estava ali desde que ele, o meu tio avô, matará, em legitima defesa, seu genro.

Alguns anos antes do meu nascimento, ou muito próximo dele, uma das filhas de meu tio avô casou-se com um homem, um tanto quanto violento, com muita disposição para o mal, que viva em brigas, machucava pessoas e isso não mudava dentro de sua casa, o tratamento dispensado socialmente era o mesmo usado com a família, caso muito comum nos dias de hoje inclusive.

Nos arredores todos temiam o homem, pois vivia armado, gostava de beber e era extremamente violento, surrava as pessoas em botecos, misturava a cachaça nos copos com o açoite do cavalo, ou cano do revolver e obrigava as pessoas a beber, brigava nos carteados quando perdia, por qualquer motivo dava tiros nos pés das pessoas, ou atrás delas quando dele fugiam, era um desordeiro de dedo frouxo, como se dizia, pois por qualquer motivo apertava o gatilho.

Morava com a filha de meu tio avô na localidade da Rondinha, também no município de Paula Freitas, nesse tempo já contavam com um filho pequeno. Devido ao seu temperamento destemperado já havia se metido em muitas encrencas onde morava. A gota d’ água se deu num carteado, onde depois de um desentendimento com um jovem rapaz o surrou até quase matá-lo, da surra restaram algumas sequelas, inclusive na visão do moço, a família jurou vingança, prometendo lavar a ofensa e o sofrimento do rapaz derramando o sangue do agressor.

Como se compadecerá da situação da filha e do neto, temendo pela segurança deles, meu tio avô, propôs ao genro que fizesse uma casa em sua propriedade, na Lagoa suja e que ali residissem, para que a filha e o neto ficassem mais seguros. Temia que a vingança se estendesse até os inocentes.

Porém o destino traçava um desfecho doloroso para todos, mais próximos, também ficava mais próxima à torpeza do genro, o tratamento por vezes desumano que tinha com a própria família, seus casos extraconjugais e suas arruaças, violências e estripulias resultado direto de seu péssimo caráter, que era potencializado em suas bebedeiras.

Durante o tempo curto que ali viveu, próximo aos sogros, o genro protagonizou momentos grotescos. Como o espancamento de um jovem, com quem teve um desentendimento comercial, usando um chicote, da porta de sua casa levou o rapaz à ponta pés e chicotadas até a estrada, onde ficava a entrada da propriedade. A violência era insuportável.

Chegou o dia em que meu tio avô, sem suportar mais a situação, foi conversar com o genro e pedir que cessasse com tudo aquilo, se aproximou dele que encilhava o cavalo para sair, depois de uma briga feia que teve com a esposa. Calmamente, mas de forma direta e enérgica, falou ao genro:

- Olha! Vou te pedir que pare de agredir a minha menina e meu neto. Caso não esteja bom pra você o casamento, vá embora, que ela tem onde ficar, mas pare de maltratar ela e a criança. Eu sou um homem velho, mas ainda não estou morto e isso não vai prestar.

O homem, com um ar de superioridade e arrogância, próprios de sua natureza respondeu:

- Cuide da tua vida velho! Das minhas coisas, da minha mulher e do meu filho cuido eu, trato como eu quiser. Dessa vez vou deixar passar, mas da próxima sou capaz de matar todos vocês e saia da minha frente.

Dizendo essas palavras ameaçadoras e rudes saiu a galope sem olhar para trás.

Nesse ponto meu tio avô sabia que uma desgraça iria acontecer e avisou seu irmão (meu avô), que morava nas proximidades, que o pior aconteceria se o genro não o matasse, um dia teria que matá-lo para defender a filha, o neto e a própria vida.

Passaram-se cerca de três dias e o genro voltou, chegou, apeou do cavalo o amarrando perto da entrada da casa, entrou cheirando a perfume de mulher, aos gritos mandava que a esposa fizesse algo para ele comer, meu tio avô ouvia de sua casa os gritos, panelas sendo arremessadas nas paredes e o choro da filha, que era espancada com golpes de chicote e bofetões.

Para se livrar das agressões, com o filho nos braços, saiu porta a fora e correu até a casa do pai, com o marido em seu encalço de chicote em punho, entrou correndo pela porta da cozinha da casa dos pais, o marido chegou à porta e foi surpreendido por meu tio avô, que colando a mão à cintura, tentou apanhar seu companheiro inseparável, um punhal com cerca de 30 centímetros de lâmina e cabo de osso.

Com o levantar abrupto do sogro e a menção do saque da arma, o genro que se encontrava desarmado, parou à porta e disse:

-Espera um pouco cambada! Hoje mato todos vocês!

E retornou correndo até sua casa. Porém, o homem que de valente não tinha nada, desistiu da entrada na casa e de continuar as suas agressões por uma simulação, meu tio avô estava, por algum motivo, sem o punhal na bainha, o movimento que fez foi guiado pelo costume que possuía de nunca se separar do punhal.

Fecharam as portas com tramelas por dentro. Pelas frestas das tábuas puderam ver o genro que retornava, agora de arma em punho, uma pistola calibre 22, arma que sempre portava. O sogro apanhou uma espingarda calibre 32 de dois canos, se posicionou de frente para a porta e esperou, minha tia avó estava juntamente com a filha e o neto ao lado direito da porta de entrada.

O genro chutou a porta, que abriu facilmente, quando deu um passo para dentro da cozinha o sogro disparou, mas a arma falhou, o genro apontou a pistola 22 na direção de meu tio avô e puxou o gatilho, mas como um gato, minha tia avó, uma mulher de estatura pequena, mas de coragem gigante, empurrou a mão do genro para cima e o tiro perfurou o telhado, feito de telhas de barro. Nesse momento, felizmente, ou infelizmente, o sogro disparou mais uma vez e a arma não falhou, o tiro perfurou o bolso esquerdo da camisa, também um cheque que estava dentro dele e por fim atingiu o coração do homem, que caiu de bruços na porta de entrada da cozinha da pequena casa de meus tios avós.

Meu tio avô sentou-se próximo ao corpo, em uma torinha de madeira e pediu para sua esposa chamar seu compadre, que também era o Juiz de paz, para que avisasse a polícia de que ele havia matado o genro. Foi levado a presença do delegado local, ouvido e mandado de volta para casa, depois de algum tempo confirmou-se a legitima defesa e não houve pena legal alguma.

A parede da pequena cozinha foi mudada, para que o local da morte, onde ficava a cruz de cedro, fosse deixado do lado de fora da casa. Ouvi ele contar essa história somente uma vez, sentado em uma torinha de madeira ao lado da porta, olhando para a cruz, com seus olhos umedecidos e uma cuia de mate nas mãos. O fato inexplicável, aterrador e estranho é que nesse dia (como relatavam que acontecia de tempos em tempos) a terra ao redor do pé da cruz estava avermelhada como se sangue dali brotasse, ou ali tivesse sido derramado.