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Maria Chorona: uma carpideira nordestina

O calor era sufocante, naquela modorrenta tarde de fim de julho. Mesmo para um teresinense acostumado com o tórrido “B-R-O-BRÓ” (setembro a dezembro), nascido e criado na bela mesopotâmica capital piauiense.

Calculei entre 35 e 38ºC, por baixo. A sensação térmica era de uns 50ºC, “no mínimo”. Pensei em confirmar no aplicativo do celular. Desisti. Adiantaria algo?

Estava na cidadezinha da esposa, localizada no extremo leste do estado, divisa com o vizinho Ceará, há aproximadamente 440 km de Teresina. Também, lá nasceu minha saudosa mãe.

É comum passar o mês de férias em casa de meus sogros. Economizo algus trocados; meus filhos têm liberdade para brincarem e interagirem com os primos e amigos. Situação bem diferente da vida cotidiana na cidade grande.

Na altitude de 495 metros, Pio IX localiza-se no semiárido nordestino, onde predomina a caatinga rala. Sua economia está assentada nas culturas do arroz, feijão e milho, além da criação de gado (leiteiro e corte) e da ovino-caprinocultura. E, a agricultura familiar ainda é o sustento da maioria da população.

A falta d’água é dos problemas mais sérios de seus 18.380 habitantes. Por lá, o camponês chora a dor das secas prolongadas. A questão econômica é o maior dos desafios para a administração municipal, sobretudo na geração de emprego e renda. 

Pacata e hospitaleira cidade, a vida corre mais devagar naquele rincão piauiense... pelo menos é a impressão que sempre tenho quando a visito. Os costumes da população são típicos do sertão nordestino. Somente a juventude quebra a calmaria local, zoando nas motos em velocidade ou troando nos paredões musicais, dentro dos possantes estacionados nas duas pracinhas, ao redor da igreja de Nossa Senhora do Patrocínio.

Minhas férias estavam no fim... e, ali, naquele momento, tentava fazer um balanço das últimas três semanas de folga no trabalho. Quase tudo que planejei dera errado, como sempre acontece. Apesar disso, sentindo imensa saudade, com a proximidade da partida.

Balançava a "redinha" instalada em armadores fixados nas colunas de sustentação da garagem ... onde passava parte do tempo, estando de "bobeira". Inutilmente, procurando diminuir o calorão que esquentava os miolos e me torrava o juízo.

Foi quando a vi parada ao portão, pelo lado de fora. Olhou-me por instantes, que me pareceram eternidade. Seus olhos azuis, adornavam um rosto redondo, com algumas rugas desenhadas e muitos fios de cabelos brancos cobrindo a testa. O rosto, de traços delicados, ainda conservava o viço da pele, espelhando resquícios da beleza de outrora. Vestida toda de preto, o suor enxarcava suas faces rosadas.

O olhar profundo daquela desconhecida me deixou paralisado. Um calafrio percorreu-me o corpo, mesmo com aquele calor que o "diabo" mandava diretamente do inferno. Uma sensação esquista e desconfortável dominou-me inteiramente. 

 

Ela fez um gesto com uma das mãos, que não consegui entender... Em resposta, apenas baixei a vista, numa atitude meramente protetiva. Quando ouvi seu passos arrastados, afastando-se lentamente, senti um alívio confortante, como quem consegue superar uma dor de dente aguda ou cólica intestinal repentina.

Finalmente reagi... entrei apressadamente, dirigindo-me ao quarto que sempre ocupava. Passei o resto da tarde indiposto. À noite, não comi nada e nem mesmo me levantei. A imagem daquela criatura desconhecida... aquele olhar fulminante e enigmático, não me saíram da cabeça por um instante sequer.

Dizer que dormi seria otimismo. Basicamente não preguei os olhos. No instante que consegui cochilar, tive pesadelo com a mulher de preto me encarando. Acordei pelo cutucão da esposa: "Quem tá te assustando tanto? Não para de gritar!". Virei para o lado, sem nada responder...

Levantei-me por volta das 10:00h. Um trem inteiro havia passado por cima. O corpo e a cabeça doloridos. Sem disposição para absolutamente nada.

Entrando na cozinha, ouvi um buchicho sobre a morte de alguém. Não tendo o que fazer, resolvi conversar com minha sogra.

_____Quem morreu? É alguém conhecido?
_____Cumpadre Desidério "Pau Melado" morreu de madrugada... o corpo tá indo pra casa, agora!
_____Ôxe... ainda não foi pra casa? (indaguei sem entender).
_____É que cumpadre infartou, lá no Cabaré da Toinha Cabaçuda!
_____Vixe, deu um nó da gôta serena... o homem é um 'Pau Melado' e morreu furnicando no Cabaré da Toinha Cabaçuda, hein? (tentei melhorar o clima)
_____Não brinque com essa estória... cumadre Noquinha está desmilinguida... tinha ido cuidá da filha parida, fora da cidade... aí, cumpadre Pau Melado foi fazê senvergonhice... deu no que deu! (rebateu a sogra)
_____Pôxa... assim mesmo? (eu... sem saber o que mais dizer)

Tomei café, mesmo sem muita vontade. A  prosa sobre seu Desidério 'Pau Melado' povoava minha mente o tempo todo. E, estando de bobeira, minha sogra me pediu para deixá-la no velório
— levaria arranjo de flores e ajudaria a família do falecido, no que fosse possível.

No percurso, indagada por mim, minha sogra justificou o "porquê" do sugestivo apelido: "na Zona Rural de Pio IX tem uma região conhecida como Pau Melado do Buraco Fundo... ali, quase tudo é de cumpadre Desidério". Então, está tudo certo, pensei... "Zona Rural... Pau Melado do Buraco Fundo... Cabaré da Toinha Cabaçuda!"... fazer o "quê", se o homem gostava disso tudo? 


Rapidamente meu carro estacionava na residência do defunto. A casa aparentava muito grande, modelo tradicional na região, com garagem na lateral e um pé de figueira na parte externa. Localizada na ruazinha que leva à barragem, bem pertinho da lavandaria pública. E, pela janela aberta, avistamos pessoas em seu interior. Na calçada, alguns curiososo conversavam animadamente. Jovens teclando celulares... Em princípio, não parecia o velório de um personagem importante para a cidade.

Na sala da frente... encontramos o corpo do falecido, dentro do caixão, adornado por flores brancas, comuns nesse tipo de evento. Algumas pessoas, sentadas à certa distância, prestavam solidariedade à família enlutada.

Próximas ao caixão... duas senhoras vestidas de preto, com posturas distintas
— uma sentada numa cadeira de madeira, muito silenciosa, com olhar perdido, triste, circunspecto... a outra, debruçada sobre o caixão, chorava escandalosamente, ao tempo em que repetia enfadonha: "Por que meu Deus? Por que levaste esse homem bom e honesto? Temente a ti, Senhor!  Marido maravilhoso, pai de família honrado, homem trabalhador! Por que meu Deus?"

O choro era tão alto, intenso e desesperador, deixando-me apavorado. Achei mesmo que ela iria infartar, a qualquer momento. Observando o comportamento das duas, um pensamento me passou pela cabeça... "a chorona é a viúva, claro... a outra deve ser parente próxima... talvez, uma irmã do seu Pau Melado".

Minha sogra se aproximou do caixão, passando levemente a mão na testa do defunto. Fez um "pai nosso", com a ponta dos dedos. Depois, arqueando o corpo, abraçou longamente a mulher sentada... segredando algo ao seu ouvido. Creio ter demorado uns 5 minutos, naquela posição.

Em seguida, deu tapinha nas costas da "chorona"... Ia se deslocando, quando a mulher se voltou, abraçando-a fortemente. Nesse momento, identifiquei como sendo a mesma que me causou calafrios, na tarde anterior... "É ela, sim... a mulher de preto, de olhar apavorante!", mumurei baixinho.

Fiquei atônito com a descoberta. E, quando dei por mim, minha sogra estava ao meu lado. Não contendo tanta curiosidade, perguntei-lhe:

_____Quem são as duas mulheres? (apontei com a ponta do queixo)
_____Eita homem perguntador... a sentada e calada é cumadre Noquinha, viúva do falecido Desidério Pau Melado! A outra, é Maria Chorona! Depois lhe conto mais... velório não é momento de fofoca!

Minutos após, uma senhora morena e rechonchuda, com um vestido longo, esquisito... suando feito chaleira, aproximou-se donde estávamos. Mal nos cumprimentou, procurou assunto com minha sogra:

_____Bom dia, cumadre... a expressão no rosto de seu Pau Melado é tão boa... parece até que tá dormindo... sonhando!
_____Também... do jeito que morreu... não é todo mundo que tem essa sorte... né? (não me contive com aquela  inoportuna observação)

Minha sogra me fulminou com olhar de desagrado. Poucas vezes a vi tão furiosa. Achei melhor não emitir mais comentário algum. O silêncio falaria por mim, dali em diante.

O tempo se arrasatava. Estávamos há quase duas horas e o cenário era o mesmo. Chegava uma pessoa, saia outra. A sala, até, ficou um pouco mais cheia. Condoída, minha sogra rezava o "terço", baixinho.

 

Observei atentamente as duas mulheres enlutadas: permaneciam com a mesma postura. E, de tanto ouvir a ladainha da "chorona", já tinha decorado tudo o que dizia sobre o falecido.

Ao me ver olhando o relógio, por mais uma vez, minha sogra disse: "Vá pra casa, já deve está cansado... lá de casa, peça pra trazerem 02 garrafas de café e rôscas, pro lache das pessoas".

Hora depois estava de volta. Pensei em pedir alguém para me substituir, naquela incumbência. Mas, resolvi voltar.  Quando entrei na sala, minha sogra se aproximou, orientando-me levar o "lanche" até a cozinha. Apontou-me por onde deveria seguir.

O cômodo estava apinhado de mulheres. Comiam e conversavam animadamente. Entre elas, ninguém menos que a "chorona". Fiquei pasmo, indignado quando a ouvi contando anedotas sobre "velório". Era quem mais se destacava naquela roda de comadres. Não parava a matraca... disse a mim mesmo: "Não pode  ser... há pouco se descabelava pelo defunto!"

No retorno pra casa, não aguentei... de supetão, abordei minha sogra:

_____A senhora não gosta de comentários... mas, não estou entendendo nada! (começando a prosa)
_____O que meu genrinho quer saber?
_____Quem é aquela que tava pra morrer de chorar... mais que a viúva? É o "quê" de seu Pau Melado? Rapariga?
_____Eita... Maria Chorona num é nada de cumpadre Pau Melado... é animadora de velórios! (rindo de minha curiosidade).
_____Como assim?
_____Ora... cumadre Noquinha tá "jururu" pelo marido tê infartado num cabaré... os filhos devem ter chamado Maria Chorona!
_____Vixe... e é assim?
_____Dizem que agora tá cobrando 100 reais... antigamente, recebia qualquer agrado! Hoje tem até Instagram e FACEBOOK!

_____Vixe... é assim?

_____ É a mais famosa da região! Quando chamada pra outras cidades, cobra diária e hospedagem ... e hora dobrada!
_____Tô acreditando porque a senhora tá dizendo! Como começou a fazer esses serviços?
_____O marido foi embora com outra, deixando Maria com 4 filhos menores e barriguda do caçula... A besta passava o dia chorando pelos cantos... sempre que tinha um velório, aparecia por lá... Aí é que chorava mesmo... começou a ganhar uns trocados... assim, foi desenvolvendo o ofício!
_____Deus do Céu!!! (exclamei)
_____E tem mais... com esses trocados, tá formando filho em medicina e outro em direito... na cidade de Fortaleza! (disse-me, admirada).
_____Pôxa... que coisa?
_____Bom... tem uma filha que não quer nada com estudo... Maria Chorona tá treinando pra sê sua ajudante!
_____É... time que tá ganhando não se mexe!!! (encerrei o assunto)

Estávamos na porta de casa. Dia seguinte, voltaria à Teresina.

 

 

 
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POST SCRIPTUM

 


Aos amigos que tiveram fôlego e paciência para chegar ao final deste "causo", esclareço que Carpideira é uma atividade feminina, ainda, existente em algumas regiões do Nordeste... onde mulheres são contratadas para chorar por um defunto alheio, animando os velórios.   


Geralmente, é feito entendimento financeiro com familiares do defunto. A Carpideira chora copiosamente, mesmo sem nenhum sentimento, parentesco ou amizade pelo morto.

Segundo estudiosos, a profissão existe há mais de 2 mil anos. Inclusive, mencionada na Bíblia e em outros textos religiosos. Foram encontradas citações sobre Carpideiras em documentações iconográficas e nos relatos de historiadores da Antiguidade.

O "modus operandi" das Carpideiras é bastante variável, não havendo um padrão para o ritual fúnebre: indo do tradicional choro convulsivo e descontrolado, com as cantinelas tipicas do lugar ou acrescentando qualidades inexistentes e importância social  infundadas sobre o falecido.

Em alguns países persistem muitas dessas praticas. Provavelmente, pela crença que favoreçam a purificação do espírito do falecido.  

Antônio NT
Enviado por Antônio NT em 05/10/2020
Reeditado em 13/01/2024
Código do texto: T7079866
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