Partida

Nenhuma palavra. Falava nada, soltou um respiro e só... O pai do senhor Dico comentava sempre que a porteira deveria ficar aberta. Bobagem, nunca acontecia. O gado estourava, virava uma anarquia; não tinha jeito de deixar aquele projeto de cercado aberto não! Mas o velho sempre comentava... Seu Dico, filho único, herdou a terrinha do pai, comprou um gado aqui e outro ali, que eram a sua família. Levava uma vida de muito trabalho e gostava. Acordava cedinho, passava uma mão de água na cara... um gole satisfeito no café e a outra mão já alargava pra cima da enxada. Antes de usar a enxada pros devidos fins, o homem a escorava na portinhola do curral, se acocorava e puxava a lona azulada: era, depois do café, o cheiro mais gostoso do dia. Era o silo modesto do Seu Dico, bem fresquinho pra animal nenhum colocar defeito. Estendia as mãos, juntava uns montes e logo distribuía pra turma... Amarelinha foi a primeira a partir. Depois a Joana e a Mercedita se foram também. A carcaça da Mercedita o Seu Dico encontrou nas beiradas de onde tinha um ipê antigo. As vacas gostavam de pastar ali, principalmente Mercedita, que teve cria ali mesmo na árvore troncuda. Já não tinha o que fazer, pensava, acreditava talvez em suportar, era a sua casa. Seu Dico se lembrava do pai e do que falava sobre a porteira. Foi entender mais tarde que deixar a porteira aberta significava que, uma hora ou outra, o homem do sertão deveria virar sertanejo. A última gota d´água caiu antes mesmo de a Mercedita ir embora. Agora só tinha ele e morreria ali se não se retirasse também. Achava que homem nascia ali e deveria morrer ali. Seu Dico, seu sertão... não fugiria. Não largaria sua terra. Precisava. Abriu a porteira, saltou ao homem toda uma vida de passagens e o fez chorar. Nenhuma palavra. Falava nada, soltou um respiro e só... olhou pros troncos do ipê, olhou pro céu arrebatador e interrogou a Deus; deixou a porteira aberta e foi. Foi ser sertanejo... Por essas estradas Seu Dico passou por muita coisa. Viu outros homens e outras carcaças, viu terra rachada e conheceu o desespero. Entristeceu-se diante de outro sertão. Não tinha o cheiro do café, nem do silo, nem das manhãs. Outro sertão. Lembrava-se do pai e de quando o gado estourava, estaca engrossada não segurava, mas o projeto de cercado eles respeitavam. Encontrou muita gente e toda essa gente perguntava se Deus olhava por elas. Tanta gente só e se lembrava de quando partiu. Tanta gente deixando seus ipês. Não queria lagar dessa vida, essa era sua vida; podiam dar-lhe tudo, mas Seu Dico e essa gente não queriam largar dessa vida. Deus é sertanejo como a gente, anda por aí, às vezes num cavalo pouco veloz e manso. Arrepia o coro de vez em quando, sofre com fome e deita até no chão quente se precisar. Tem uns gados ali e do pouco que tem consegue aliviar pra família e ainda divide com uns por aí. Deus é sertanejo como a gente, chora calado olhando pro céu quando a lua chega. Vai contando devagar as estrelas e se admira. Dorme em rede, na cama de vara, não importa, ele dorme. Passa por mil porteiras. Passa com gado, com cavalo, sem nada, com tudo. Contudo, ele passa. Escuta o cedro bater e dá um sorriso, quase que o som engana, mas sabe que é só de uma que sente saudade. Deus é sertanejo como a gente, espera o raio apontar no céu, fazer clarão nas vistas e avisar que já dá pra voltar. É como a gente sim, Deus é mesmo. É sertanejo.

Vitor Romano
Enviado por Vitor Romano em 31/07/2020
Código do texto: T7021792
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