Confesso: fui Otário !!!


Tenho grandes amigos. Um deles é o Mozaniel Almeida. Amizade nascida no RL e estendida para o resto de nossas vidas.

O cabra é meu conterrâneo, aqui de Teresina, embora resida em Aracaju há muitos anos. Não é poliglota e muito menos troglodita, mas, escreve “causos” como poucos... seja pela qualidade do texto ou em virtude do bom-humor refinado e marcante.


Mozá usa um epíteto engraçado e sugestivo 
— Um Piauiense Armengador de Versos. É conhecidíssimo e amado no Recanto das Letras.

É intelectual dos bons e sonetista notável. Sabe tudo e mais um pouco sobre qualquer assunto que se converse, mesmo que se trate de uma lenda siberiana, contada pelos oficiais alemães, durante a 1ª Guerra Mundial. Possui memória do tamanho dum elefante (trilhóes de gigabytes). Aquilo que sei nas entrelinhas, ele conhece  com profundidade e detalhes.


Além dessas características, tem algo absolutamente sui generis: seus comentários costumam ser melhores do que os próprios escritos que lhe dão origem. Pelo menos em relação aos meus, assevero ser verdadeiro!.

E, dentre mais de centena de extraordinários textos, postados no RL, criou a graciosa série “Coisas que só acontecem comigo”. São causos divertidos e margnificamente contados, que, de pés juntos e dedos entrelaçados, o escriba jura verdadeiros. Eu, sinceramente, mesmo que desconfie um pouquinho... ACREDITO SEMPRE!!!

Pois bem... dentre os diversos causos interessantes que postou no RL, destaco o relato das artimanhas utilizadas por um esperto cidadão, ao lhe dar golpe num caixão de defunto. Quando li, lembrei-me imediatamente de algo ocorrido comigo, muito vexatório. Vou descrevê-lo!!!

Era estudante de economia em Recife. Tinha uns dezoito anos. Morava com conterrâneos, num apartamento alugado, localizado nas imediaçãoes da Universidade Federal de Pernambuco: espécie de república de estudantes piauienses.

Vivia num momento especialíssimo. Havia passado num vestibular, concorridíssimo, com pontuação das mais elevadas. Por conta disso, meu pai fez um sacrifício e me deu um carro ZERO... um fiat 147, o auto da moda, naqueles tempos.

Logo me destaquei no curso de Economia, obtendo notas elevadas. 
Esses inesperados êxitos, conjugados com a pouca idade, fizeram-me autoconfiante... a soberba lá no teto. Tinha me tornando intragável mesmo!

Meus pais melhoraram minha mesada. Comecei a estagiar num escritório de projetos. Havia feito, ainda, vestibular para Psicologia e Jornalismo... logrando aprovação em todos. Enfim, estava me considerando o verdadeiro “31 de fevereiro”.

Eu tinha uma namoradinha de infância, em Teresina... a imaginava como futura mãe dos meus filhos. Primeira e única paixão, até então. Era algo consolidado no seio das duas famílias. No entanto, engatilhei um namorico com uma colega de classe, mudando o rumo de vida. Com ela... conheci as noites recifenses!!!

Essas mudanças fizeram meu dinheiro render menos.
Mesmo a distância,  minha mãe percebeu a situação. Alertava-me sempre para não atrasar compromissos financeiros, especialmente, o aluguel do apartamento.

E de fato... comecei a me descontrolar. A mesada mal dava para a primeira semana. No restante do mês, tudo era regrado, até a comida.

Nessa época, não existia celular ou qualquer outra forma acessível de contato. A comunicação com meus pais, semanalmente, ocorria através do telefone de um vizinho.

Assim... mês de abril (véspera de meu aniversário)... estava numa pindaíba daquelas, quando um colega veio me cobrar a cota no aluguel. Na realidade, já estava atrasado.

Resolvi deixar o carro na garagem e ir de coletivo ao centro da cidade, numa agência do antigo Banco Nacional S/A (família Magalhães Pinto). Fui verificar se meu pai havia depositado a mesada.

Desci do ônibus na Av. Conde da Boa Vista e caminhava apressado pela ponte Duarte Coelho, quando presenciei algo que me chocou: um garoto subindo na mureta lateral, ameaçando se jogar no rio. Corri assustado e o segurei pela cintura. Sacudi-o, abruptamente: “Que é isso rapaz? Que loucura é essa?"

O moleque chorava copiosamente. Aos prantos, dizia ter saído de casa, deixando a mãe e dois irmãos menores sem nada pra comer
— sua genitora era cadeirante Tomava remédios controlados e não havia dinheiro pra comprá-los.

Fiquei sensibilizado com a narrativa. Meus olhos lacrimejaram de imediato. Como não chorar, ouvindo uma história tão triste?

Aí, ele tirou do bolso uma velha e suja aliança. Mostrou-me emocionado. Disse-me que era o único bem da família; lembrança do casamento dos seus pais. 
Perguntou-me se não podia comprá-la.

Fiquei constrangido, sem ter o que dizer. Passados alguns instantes em que a emoção tomou conta de mim, dei-lhe o resto do dinheiro que tinha no bolso. Nem lembro quanto, em função do tempo e das sucessivas mudanças da moeda no Brasil, desde então.


Aturdido, perguntei porque ele mesmo não vendia a aliança, numa rua comercial próxima à Rua da Matriz, nas imediações do tradicional Teatro do Parque. Era uma região conhecida pela pratica da negociação de ouro, prata e objetos derivados. 

O garoto retrucou veementemente. Alegou que poderiam prendê-lo como ladrão, caso fosse pessoalmente. "Quem vai acreditá que é da minha mãe?", indagou-me de supetão. E, continuou a chorar convulsivamente.

Não resisti, embora já tivesse entregue o que dispunha no momento. Chamei-o para ir ao banco. Lá, após constatar que meu pai havia feito a transferência, saquei tudo e lhe entreguei quase a metade. Decidi a questão: "Eu mesmo venderia a aliança, enquanto ele iria comprar o remédio da mãe!". Em seguida, nos encontraríamos num lugar marcado
— retiraria minha parte; ele ficaria com o resto da grana.

Fui até uma loja especializada. Bom... quando o ourives viu a tal aliança, desatou a rir: "Você é a décima pessoa que vem nessa semana, com a mesma histórinha furada!"Caminhou até um balcão e voltou com um embrulho nas mãos. Mostrou-me uma velha e amarelada caixa de sapatos. Nela, um punhado de falsas alianças. Fiquei lívido!

A ficha caiu. Entrei em pânico. C
orri ao lugar combinado, com esperança de não  ser verdade, o que tinha como uma quase certeza... Nada do garoto chorão!!! Esperei por umas duas horas, desolado... 

Fui pra casa "puto da vida". De noite, mamãe ligou para o apartamento vizinho. Disse-me que papai havia depositado dinheiro. Recomendou-me, mais uma vez, que não deixasse de pagar aluguel e condomínio, pra não criar atritos com os parceiros.

Muito chateado, reuni os colegas e relatei a desventura do dia. Comuniquei, também, que atrasaria novamente minha participação nas despesas do apartamento.
 
Terninada minha narrativa, ocorreu discussão danada; troca de acusações sem fim. Ninguém acreditando naquela história tão inverossímel. Só não fui às vias de fato com um deles, porque Deus não quis. Melhor... apareceu alguém mais sensato, que interveio na hora do "pega-pra-capar"!


Após a altercação, recolhi-me ao meu quarto. Numa folha de caderno, em tom de desabafo, escrevi em letras garrafais a seguinte mensagem: "Favor não incomodar o OTÁRIO!". Preguei-a na parte externa da porta.

Magoado e abatido, deitei-me em seguida. E, ainda que cansado, numa ressaca moral braba, demorei a dormir... remoendo cada detalhe daquela infeliz e desconfortável situação.

No adiantado da manhã, quando me levantei, naquele mesmo papel pregado na porta, notei que um filho da puta escreveu abaixo: "É OTÁRIO SIM, CALOTEIRO TAMBÉM!"

 

                        Post Scriptum


Mozá... você foi ingênuo e bem intecionado, quando pagou por um caixão para um falso defunto; eu, bem mais que isso... fui um "Otário"... de verdade!!!

Como somos jovens, ainda teremos algum tempo pela frente. Certamente, aprenderemos que nem tudo que "Reluz é Ouro!"... e que existem mortos mais vivos, que muitos vivos que conhecemos!!!  

 

Antônio Carvalho Neto

 

Antônio NT
Enviado por Antônio NT em 06/05/2020
Reeditado em 28/01/2024
Código do texto: T6939088
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