Pino quadrado em buraco redondo

Apesar de ser um homem muito atarefado (estivera na berlinda nos últimos dois meses), o Dr. Edward J. Goodwin concordou em me conceder uma entrevista, particularmente ao saber que eu escrevia para alguns jornais de Nova Iorque (jornais de bairro, mas eram de Nova Iorque). Marcamos um encontro em seu consultório, no sossegado vilarejo de Solitude, Indiana, onde ele clinicava e residia. Aquele fim de mundo modorrento, próximo à divisa com o Kentucky (e por conseguinte, ao rio Ohio), parecia ser o último lugar onde uma importante descoberta científica poderia vir à luz no século XIX; mas, quem sabe, eu não estaria apenas sendo preconceituoso?

- Provavelmente, o senhor deve estar surpreso por um médico do interior solucionar um enigma de séculos! - Declarou sorridente ao me receber no consultório, paredes adornadas com diplomas amarelados e fotografias do que imaginei fossem familiares.

- Considerando que é um problema facilmente comprovável com régua e compasso, não me sinto tão surpreendido assim - ponderei. - Certamente, o senhor deve ter submetido o seu método patenteado à apreciação dos seus pares da comunidade científica.

O Dr. Goodwin entrelaçou os dedos sobre a mesa, o sorriso se convertendo numa careta.

- Qualquer um pode comprovar a exatidão do meu método, - retrucou - mesmo uma criança da escola primária. O que, aliás, é exatamente o que elas irão aprender aqui no estado.

- O senhor pretende que a sua teoria seja ensinada nas escolas de Indiana? - Questionei, tomando nota num bloco de papel.

- Precisamente. Pelo uso da minha prova... não teoria, prova... - atalhou ele, gesticulando - o estado estará isento do pagamento de direitos autorais, os quais cobrarei de todos que queiram usá-la. Em troca, a Câmara dos Representantes de Indiana aprovou por unanimidade uma lei, declarando que a minha descoberta é matematicamente sólida. O uso arraigado do número 3,14 para representar a relação entre o perímetro de uma circunferência e seu diâmetro deve ser denunciado como enganoso e insuficiente para qualquer aplicação prática; a proporção correta é de 4 para 5/4.

Fiz uma conta rápida no bloco.

- Como então, o senhor afirma que o valor correto de pi é 3,2?

- Ninguém aqui falou em "pi" - retrucou Goodwin. - O que eu demonstrei, de forma cabal, foi a solução para o problema milenar da quadratura do círculo, algo reputado pelas maiores e mais reputadas instituições científicas do mundo, como um mistério insolúvel acima da capacidade da compreensão humana.

Parou de falar e ficou me encarando, como que a espera de aplausos. Como eu não aplaudisse, rematou:

- E essa verdade, senhor jornalista, agora será lei!

- Pelo menos no estado de Indiana - assenti, guardando o bloco de notas no bolso do paletó. - Agradeço muitíssimo pelo seu tempo, Dr. Goodwin; acredito que meus leitores ficarão agradavelmente surpresos ao saber que, mesmo nos rincões mais distantes da América, ainda há homens voltados para o estudo de problemas de tamanha complexidade, em suas horas vagas.

E ao me despedir, não resisti a tentação de fazer uma última pergunta:

- O senhor certamente ouviu falar do trabalho do seu colega, o matemático alemão Ferdinand Lindemann?

- Lamento, mas não costumo acompanhar publicações científicas europeias - desculpou-se ele. - Leio apenas o "Boston Medical and Surgical Journal".

O qual, naturalmente, nada tinha a ver com matemática.

- Bem, a descoberta dele não é exatamente nova... deve ter... uns 15 anos, na verdade. Foi em 1882.

- E o que descobriu este alemão que possa me interessar? - Inquiriu Goodwin, braços cruzados.

- Nada de mais - redargui, mão na maçaneta da porta. - Ele provou que pi é um número transcendente, e que, portanto, é impossível resolver o problema da quadratura do círculo usando apenas régua e compasso.

Saí para a tarde luminosa de Indiana, pensando que seria bom conversar com o meu velho amigo, o professor Waldo, sobre a possibilidade daquela aberração ser aprovada pelo senado estadual. Alguém que fosse mais do que um matemático de fim de semana, deveria chamar os legisladores à razão.

E, felizmente, eles acabaram se rendendo à ela.

- [09-12-2019]