A MORTE NÃO MANDA RECADO !

A MORTE NÃO MANDA RECADO !

Eram tempos plenos de superstições aqueles, ver gato preto dava azar, ninguém passava por debaixo de uma escada nem andava para trás e ouvir o pio de uma coruja era sinal de mau-agouro. Tempos também muito cristãos, com as figuras de Deus e do Diabo permeando tudo. No vilarejo interiorano, de carroças e cavalos, ainda não se saíra dos 1800, a luz elétrica fôra instalada apenas na área central da cidade e tudo o mais parara no tempo. Este "causo" sucedeu lá por 1930, talvez 40, nunca soube ao certo, porém vem sendo narrado por gerações desde aquela época longínqua.

A Fazenda da Mula Preta "desapareceu", o mato tomou conta de tudo, restos de paredes e colunas apontam os céus, mudas testemunhas de um tempo de fastio e prestígio. O dono anterior morreu queimado num incêndio misterioso num dos vários quartos da mansão, no auge da fase áurea do moinho produtivo, farinha e cana de açúcar sustentando a região e empregando boa parte do povoado.

O jovem Sanathas fôra o proprietário derradeiro e é com êle essa estranha história, passada nos primórdios do século passado... fôra menino imprestável, verdadeiro "capeta" que maltratava animais e respondia com grosseria a adultos e idosos. Nascera de uma das muitas "escapadas" que a mãe dera na vida, até ela não sabia quem seria o pai. Desconfiava ser de uma noite de esbórnia, bebida e sexo furioso na fazendola do patrão, aquele que morrera "torrado", mas ela se benzia sempre que a idéia lhe vinha à cabeça. Agora, Sanathas vivia só pra farras, não saía do lupanar da região, a "casa da Madame", ou melhor, "da zona" como falava o povão, situada nos confins da vila, por ordem e imposição do vigário.

Noite alta, mais uma de tantas iguais, voltava êle pra casa modesta após gastar seus dias, digo, noites como "segurança" do prostíbulo, explorando uma ou outra puta mais fácil de ser intimidada. Eis que na única encruzilhada do vilarejo, passada a meia-noite, surge um sujeito bem vestido, terno impecável, charuto cubano entre os longos dedos, olhos brilhantes e... patas, no lugar dos sapatos, o que Sanathas -- "esponja de cachaça" -- nem percebeu. Também não viu as orelhas pontudas, ocultas pelo "chapéu panamá" nem a fumacinha que delas surgia.

-- "E aí, camarada ?! Quer sair dessa vida e ficar rico" ?

-- "Quem é você, palhaço ?! Algum milionário" ?!

-- "Sim, sim... basta assinar esse papel e terás dinheiro a rodo, pelo tempo que quiseres" !

-- "Dinheiro... que dinheiro ?! Só vejo mato por aqui" !

Com o estalar dos dedos o sujeito faz aparecer bela mala com notas de 10, 20, 100 mil réis, até de 1 ou 2 "contos", verdadeira fortuna. Com discreto sinal do indicador a mala "voa" até os pés do "Zé Pinguço", "encharcado de birita", a famosa "Tatuzinho" -- aquela do "me abra a garrafa e me dá um pouquinho" -- mas, mesmo assim, arrepios de pavor percorreram sua espinha e sentiu o xixi descendo pelas pernas bambas.

-- "Estás com medo, "verme" ?! Não vais abrir a mala" ?

-- "Eu lá sou homem de ter medo ? Passe pra cá o papel, vou assinar essa "palhaçada" !

-- "Estás vendendo tua vida, tua alma agora é minha" 1

-- "Quem decide isso é Deus, nojento... e não você" !

-- "Isso é o que veremos, idiota... lembre-se, venho te buscar no Carnaval de 1950, você é meu agora"!, e "sumiu" como surgira, gargalhando, cheiro de enxofre no ar.

Embora sem acreditar na lorota do "fantasma" êle fizera ótimo negócio, aquela grana toda duraria uns bons anos. Derramou tudo num buraco á beira da estrada e cobriu-o com galhos e folhas, teve medo de ser roubado no caminho para casa, o temor primeiro de todo o que enriquece. Bem cedinho voltaria para recolher a "bufunfa", num saco velho, que não chamaria atenção. Já em casa, indormido, repensando no ocorrido, abriu a mala e -- para seu espanto -- mais dinheiro a abarrotava. Quase desmaiou de prazer... na mesma tarde comprou a Fazenda da Mula Preta e o "dancing" "Luz Vermelha", onde se deitava a cada noite com uma das "meninas de vida fácil" e espalhava dinheiro a rodo.

Na mansão reformada, móveis novos, instalou luz elétrica, promoveu festas e bailes todos os meses... a mãe faleceu de desgosto, sabia bem o significado daquilo. Chegando o ano fatal surgiram na fazenda gatos pretos, olhos amarelos faiscando e lhe trazendo à mente o contrato fatídico. Contudo, tinha um plano: se mudasse bastante seu visual conseguiria enganar o tal fantasma... armou big festa, baile de carnaval, "comprou" a cidade inteira para dela participar, pagando-lhes as fantasias. Na noite derradeira disfarçou-se de "Carequinha", o palhaço mais famoso da época, rosto todo pintado, irreconhecível. A Morte procurou em vão pela cidade inteira o sujeito que o Lúcifer lhe ordenara levar pro Inferno... não o encontrando, "pra não perder a viagem" decidiu levar o palhaço sem graça, único que não se divertia. Arrastou-o pelo salão lotado, êle aos berros, os brincantes todos crendo que aquilo era uma brincadeira, diversão !

Viram as 2 figuras "alçarem vôo" e o pandemônio se instalou no salão, todos fugindo espavoridos. O dinheiro -- quem o tinha guardado -- virou cinzas e a Fazenda foi dada como amaldiçoada !

"NATO" AZEVEDO (em 16/nov. 2019, 5hs)

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ADENDO AO TEXTO - conheci essa estória como breve piada nos anos 60, sem autor conhecido... minha adaptação apenas amplia o tema inicial, descrito em 4 ou 5 linhas na época.