Baratinha

Baratinha

A Natal da década de 1960 era riquíssima em personagens marcantes. Um deles era Baratinha, um mulato de cerca de um metro e sessenta e cinco de altura, ainda bem forte, apesar de seus cerca de cinquenta e tantos anos.

Trabalhava em uma oficina mecânica na Ribeira e todos os dias, ao fazer o percurso de volta para casa, no morro de Mãe Luiza, aí por volta das seis e meia, cruzava o bairro de Petrópolis, terminando pela Cirolândia –como eram chamados os seis últimos quarteirões do bairro – limite com o morro.

Pois foi justamente na Cirolândia que Baratinha alcançou a notoriedade, já que nenhum outro lugar da cidade tinha tamanha concentração de crianças e adolescentes por metro quadrado. É certo que isso, por si somente, não explicaria o porquê da notoriedade do velho operário, mas quando se acrescenta a informação de que ele fazia o trajeto completamente embriagado, por vezes ainda segurando uma garrafa de cachaça já quase vazia, cambaleante e claro, nada discreto...

Mas isso não era tudo, ou Baratinha seria apenas mais um bêbado voltando do serviço pra casa. O inusitado é que ele adorava um discurso, nos moldes dos políticos em campanha eleitoral. Gesticulava e discursava tão alto que as veias do pescoço ficavam dilatadas.

- Lá vem Baratinha! - anunciou um garoto, dizendo que estava escutando um discurso lá longe. Com efeito, alguns minutos depois já aparecia a figura inconfundível do bêbado, seguido de alguns meninos que o vaiavam a cada pausa do discurso, enquanto uma pequena multidão de adultos e crianças já o aguardava, por pura diversão.

Seu bêbado! - gritavam.

Baratinha continuou impassível. Seu discurso não foi interrompido nem alterado.

Vai trabalhar, vagabundo!

Foi como se não tivesse ouvido nada. Intensificou o discurso que ganhava conotações políticas, com ênfase na falta de moralidade administrativa de nossos governantes.

Seu corno! Provocou um dos circunstantes.

Permaneceu sereno, sem demonstrar rancor pelo desrespeito sofrido. Sua atitude era semelhante à de um lorde inglês, em contraste com sua condição deplorável.

Cala a boca, seu corno filho da p...

Nem assim perdeu a estribeira. Dava, assim, uma verdadeira lição, embriaguês à parte, aos seus opressores, não lhes pagando na mesma moeda a ofensa recebida.

Finalmente, já sem opções de palavrões inéditos ainda disponíveis, ouviu-se um grito forte, no meio da multidão:

Comunista!

Foi fogo na gasolina. Para surpresa de todos, Baratinha ficou fora de si e, dessa vez, reagiu com fúria, não poupando ninguém:

Comunista é a mãe, magote de cabra safado. Vocês me respeitem que eu sou trabalhador e homem de bem. Ninguém tem o direito de ofender minha honra, seus desgraçados.

Todos ficaram abismados. Ninguém entendeu o porquê de todos os xingamentos proferidos não terem provocado nenhuma revolta, enquanto a simples menção “comunista” causou toda aquela reação. Com o tempo, algumas tentativas de explicação do comportamento de Baratinha vieram à tona, mas apenas uma é considerada plausível, ainda que alguns a classifiquem como uma verdadeira teoria da conspiração. Trata-se do artigo escrito pelo jornalista “free lancer” Saulo Heinz que, à época, era um dos adolescentes da turba que seguia e vaiava Baratinha, também conhecido pela alcunha de Cuscus. Segue um trecho do artigo:

“... Baratinha foi, pois, um indivíduo escolhido pelos americanos e treinado pela CIA para identificar e denunciar comunistas às autoridades brasileiras, que repassariam todos os detalhes ao consulado americano. Havendo se submetido à uma verdadeira lavagem cerebral, onde lhe foi induzida a ideia de que comunistas são monstros, comedores do fígado de criancinhas, respondia em consonância com sua crença, implantada criminosamente em sua mente por agentes da CIA, em conluio com autoridades brasileiras.”

Faz sentido...faz sentido.

Guilherme Cantidio