A madrinha

O dia dois de fevereiro é dia de festa da Padroeira no Junco. As pessoas gastam todas as suas economias, de meses, em aquisição de roupas e adereços. Ninguém quer aparecer maltrapilho perante os olhos da Santa. As casas são pintadas, as ruas são caprichosamente varridas e capinadas, sob o olhar atento de João Fiscal, que não deixa passar nenhum detalhe despercebido. Tudo deve estar na mais perfeita ordem e nada pode atrapalhar o trajeto da procissão que é o ponto alto da festa.

O padre Nicolau Alves, filho do lugar, apesar de atuar em outra diocese, no sul da Bahia, é um convidado de honra todos os anos, com plena atuação no evento, animando a multidão e conduzindo as orações como um maestro conduz sua orquestra.

É comum, nessas ocasiões, o beija-mão da garotada aos seus parentes e padrinhos, o que, na maioria das vezes, se é recompensado com algumas moedas, logo gastas nas barracas de doces armadas na velha praça empoeirada.

Firmo Vieira, cidadão respeitado, estilista do lugar, se fazia acompanhar da esposa e do seu filho Zé Pequeno - pequeno no tamanho e gigante nas diabruras - quando deu de cara com Dona Joventina, mãe do prefeito, entusiasta da festa e madrinha de parte da população junquense, como não poderia deixar de ser, também havia levado o endiabrado Zé Pequeno à pia batismal.

- Tome a bênção de sua madrinha, Zé! – ordenou firmo.

- Deixe pra outra hora, papai – pediu o menino.

- Vai tomar a bênção à sua madrinha, moleque!

- Papai, deixa para depois, outra hora, agora não, estou com vergonha!

- Vergonha de que, menino? Pede logo esta bênção que a procissão já vai começar!

Dentre todos os apelidos que existem no mundo, escolheram uma devassidão para Dona Joventina: Rola. “Rola”, também é uma das inúmeras denominações do órgão sexual masculino. E ninguém conhecia Dona Joventina, mas dona Rola. E era Rola pra cá, Rola pra acolá e somente Zé Pequeno se dava conta de tamanho palavrão. Como dizer: “Sua bênção, madrinha Rola!” no meio de uma multidão? Como poderia dirigir-se a uma senhora, e ainda mais quando esta senhora é também a sua madrinha, e chamá-la por um nome tão feio como aquele? Seria excomungado por Nossa Senhora do Amparo, iria queimar no fogo do inferno. Não, definitivamente, não. Era católico e rezava diariamente ao deitar-se e ao levantar-se. Era batizado nos preceitos e dogmas da Igreja Católica, estudara o catecismo, já havia feito a primeira comunhão e estava se preparando para a crisma. Era um cristão, sim, claro, e como tal deveria obedecer à lei de Deus e entre elas estava respeitar aos mais velhos. Não iria para o caldeirão fervente que seu avô tanto lhe falava em suas histórias quando iam para a roça de mandioca. Seu avô sim era um homem sábio e não lhe colocaria numa situação como aquela. Não conseguia entender o porquê da insistência de seu pai com aquele gesto. Por este motivo, e não por outro, recusava-se a tomar a bênção da madrinha e então tratou logo de se esconder, agarrando-se ao vestido da sua mãe, pedindo clemência. Rogou:

- Estou com vergonha, papai, com vergonha e com medo. Ô mamãe, me ajude, eu não quero fazer isto não!

O pai não aceitou o seu pedido, era natural, o menino estava a lhe fazer uma desfeita para com a sua comadre. Pensava o quê, este pirralho?! Dona Joventina é uma senhora de respeito e não pode e nem deve ser destratada. Puxou o filho pela orelha e determinou:

- Pede logo esta benção antes que eu te dê uns cascudos aqui mesmo, seu moleque malcriado. Isto lá são modos?! Onde já se viu me fazer passar por uma vergonha destas e logo com a comadre Joventina, a mãe do Prefeito! - esbravejou seu Firmo.

Firmo Vieira, um homem de bem, conceituado cidadão, com algumas posses, crédito e respeito junto à comunidade, não iria deixar passar em aberto um momento dificultoso como aquele e já estava com as faces avermelhadas, os olhos arregalados de ódio e as mãos trêmulas, loucas de vontade de aplicar ali mesmo um corretivo naquele moleque. Mas aí a vergonha seria pior, ele também não estaria respeitando a comadre e nem mesmo a Nossa Senhora, a grande homenageada da festa. Não poderia fazer isto, mas também não poderia deixar a madrinha envolvida numa situação como aquela. O seu filho iria tomar a bênção sim, nem que fosse à marra.

- Ô menino, você quer pedir esta bênção por bem ou vai por mal? A escolha é sua, decida! – sábia decisão acreditava estar tomando o já constrangido pai.

O garoto estava apavorado. Temia tomar uma surra do pai ali mesmo na praça, em presença de todos e, o que era pior, sabia que iria ter que prestar contas quando chegasse o dia do Juízo Final.

A madrinha, não suportava mais tanto vexame, mesmo assim não abandonou o lugar, onde já havia uma pequena multidão concentrada à espera do desfecho daquele fato, por consideração à sua comadre, pois eram amigas desde a infância. Para amenizar a situação, tirou do bolso algumas moedas, dirigiu-se ao afilhado, dizendo:

- Venha Zé Pequeno, peça logo esta bênção e eu lhe abençoarei em nome de Deus e de Nossa Senhora e iremos todos em paz, pois a procissão já está para sair.

Zé Pequeno, não viu outra saída. Olhou para a madrinha, que ali já possuía uma forma gigantesca e monstruosa, olhou também para a torre da Igreja, estendeu o seu olhar para o céu límpido do sertão, pediu coragem e força, proteção e perdão, vida eterna e piedade a Nossa Senhora do Amparo, a todos os Santos e a Deus Pai Todo Poderoso, e gritou para que todos pudessem ouvi-lo e soubessem assim a razão de tanta resistência de sua parte:

- A “bênça”, madrinha Pinta!

E correu para o meio da multidão.