MELHOR LER A BULA!

 
Era um dedicado estudante de economia em Recife, modéstia à parte. Morando fora de casa, não tinha muitas opções de lazer... e nem dinheiro para diversões. Assim, o foco se restringia a minha formação profissional.

Nessa época, aos 18 anos, raramente conseguia vencer a excessiva timidez que me acompanha por toda a vida. Por ser o mais novo da classe e pelas “notas” nas disciplinas mais complicadas, tinha certo prestígio com a turma da noite.

Assim, não fiquei surpreso, quando recebi o convite de uma colega para passar o fim-de-semana em seu apartamento. Tínhamos que fazer um trabalho de "Economia 2", em dupla, cuja apresentação seria exatamente na segunda-feira.

Pensei em recusar: nunca gostei de “casa alheia” ... como se diz em minha terra. Mas, os argumentos utilizados pela amiga foram contundentes. Irresistíveis. Em seu apartamento teríamos melhor alimentação, conforto e... condicionador de ar. Estava fazendo um "calor brabo" em Recife, mesmo para um piauiense legítimo, nascido na abrasiva Teresina.

Tinha outro detalhe importante que me impedia de dizer “não” à Mariinha... Ela mesma! Apesar do diminutivo carinhoso, a "fera" tinha quase 1,80m, natural de Serra Talhada, terra natal de Lampião. Pior de tudo... herdara toda a zanga do “Rei do Cangaço”.  

Eu já tinha testemunhado uma discussão entre ela e um professor. A mãe do “teacher” foi devidamente homenageada, durante toda a altercação. Aquela senhora merecia ser canonizada, depois que recebera tantos e injustificados adjetivos.

Bem... inutilmente, sugeri que cada um individualmente fizesse sua parte; e, alguns minutos antes da aula, nos reuniríamos para ajustes sobre os detalhes da apresentação.

Mariinha retrucou: “Deixa de tanto GAGUEJAR e acaba com essa FRESCURA... O TRABALHO SERÁ EM MEU APARTAMENTO!”. Esse argumento, convenceu-me plenamente.


Amanheci o sábado com a garganta inflamada. Senti logo aquela rouquidão incomodativa. Tive receio. Sempre que estava assim, as crises eram intensas... e me deixavam “mole” por dias.

Resolvi ligar para Mariinha. “Não era possível que não entendesse a situação”, pensei em voz alta. Procurei um orelhão próximo ao meu apartamento e lhe comuniquei meu estado de animus.

Mal terminei a explanação, fui ouvindo: “Não sabia que PIAUIENSE ERA FROUXO e se BORRAVA NAS CALÇAS, por uma simples dorzinha na garganta... deixa disso CABRA... TE ESPERO EM MEIA HORA!”.

Antes do prazo concedido, ansioso, toquei no interfone do apartamento de minha convincente colega de faculdade.

Nem bem cheguei e já recebi uma tarefa urgente: ir à farmácia comprar absorvente. Mariinha ficara menstruada, há instantes.


Eu, de fato, nunca tinha recebido uma incumbência tão desafiadora. Bom, indo comprar absorvente, procuraria remédio para o incômodo na garganta. Lembro de ter dito inocentemente: “Mariinha... e qual a marca do teu remédio mesmo?”.

Ela retrucou raivosa: “Olha PIAUÍ, não tem nada de remédio... quero a PÔRRA DUM ABSORVENTE!".  E, bem ao seu estilo, gesticulando nervosamente as mãos, complementou: "Me pega algum TAMANHO GRANDE, com ABAS... lá tem uns mais em conta! Fala com as vendedoras, rapaz!”.


Assim, fui para o sacrifício... aí começou meu suplício. Entrei na farmácia... e, cadê coragem de pedir orientação sobre absorventes? Olhei alguns, ficando em dúvida. Aliás, a única coisa que não me faltava, ali, era a tal da dúvida!!!

Saí da farmácia fumaçando, dirigindo-me novamente ao prédio de Mariinha. Como o apartamento ficasse no segundo andar (tinha uma sacadinha externa), gritei com a voz que restava... até ela aparecer.

Lá de cima mesmo, balançando negativamente a cabeça, a fera despejou o vozeirão: “Ainda não COMPROU? Não sabe DIZER que quer ABSORVENTE? Eita CABRA FROUXO e ENROLADO DA PÔRRA!”.


Puto da vida voltei à farmácia. Diante da primeira vendedora, fui dizendo: “Olha, quero absorvente feminino... que seja bom, confortável e barato... e não é para mim... viu?”.

A garota sorriu na minha cara: “Imagino que não seja mesmo... mas, vou lhe mostrar alguns!”.

Percorri poucos passos e logo vi a prateleira com um produto que me chamou atenção, em cuja embalagem estava escrito “FLOGO-ROSA”.

 

Lembrei-me que minha mãe sempre indicava “FLOGORAL” para gargarejo diário, quando estava com crise de garganta. Certamente, aquele “FLOGO-ROSA” teria o mesmo princípio ativo. Assobiei, alegremente. "Resolvido o meu problema!", vaticinei naquele instante. 

Peguei o tal remédio (para mim, óbvio!) e escolhi um absorvente para Mariinha. Entreguei-os à vendedora. Ouvi bem quando ela disse, em tom jocoso: “Esse FLOGO-ROSA também não é para você, suponho!”.

Respondi-lhe na lata: “Claro que é... estou muito precisado... ora bolas!”.

A vendedora me olhou ironicamente, dizendo: “Imagino sua precisão... tadinho!”.
Fiquei desconcertado com tamanha insolência. Tive vontade de lhe mandar à "Puta Que Pariu"...

Paguei a conta. Rapidamente estava à porta de Mariinha. Ao entrar, entreguei-lhe o absorvente. Em seguida, indaguei-lhe onde era o banheiro.

Antes de me dirigir ao recinto, ainda, deu para ouvir: “PÔRRA PIAUÍ... tu num sabe comprar a MERDA dum ABSORVENTE... mas, vou usar essa BOSTA mesmo!”.


Entrei e me despi imediatamente. Coloquei a mochila (com toalha, alguns livros e muda de roupa) sob a pedra da pia. Pensei tomar banho para matar o calor. Também, fazer a assepsia com o tal “FLOGO-ROSA”. Assim, tirei o vidro da caixa, desatarraxei a tampa e virei direto na boca... gulosamente, enchi toda de uma vez e comecei a gargarejar. Foi quando senti uma comichão intensa, como nunca vira nada igual.

Parece que era o “fogo do inferno” que entrara em minha boca e, ao mesmo tempo, saia pelas narinas, olhos e ouvidos... queimando tudo por onde passava... a língua, garganta, faringe, laringe, esôfago... possivelmente, até o reto. Imaginei naquele instante.

Comecei a tossir convulsivamente, sem parar. Meus olhos se encheram d’água. Tentei dizer algo e nada consegui. Desesperado... abri a porta e sai do jeito que Deus me mandou ao mundo.

Reuni toda a coragem que me apareceu e, com voz sumida, supliquei: “Pelo bem que quer sua mãe, traz água gelada... gelo, também... se puder, traz o Corpo de Bombeiros... estou pegando fogo por dentro”.  

Vendo-me naquele estado deplorável, Mariinha correu ao banheiro. Voltou com uma toalha na mão, que logo me entregou. E, na outra, o frasco do tal “FLOGO-ROSA”.

Olhou-me zombeteiramente e desabou no chão de tanto gargalhar: “Seu LOUCO... você fez GARGAREJO com SOLUÇÃO VAGINAL? Vai gostar de XOXOTA, assim, lá no Piauí!”.


Resumindo... voltei à farmácia. Agora, a procura de remédio para aliviar o ardor do corpo todo.

Nada mais de estudo. Cheguei em meu apartamento afônico e maltratado. A moral lá em baixo. Passei um dos piores fins de semana da vida. Quanto ao trabalho... que se FUDESSE!


Segunda de manhã, cheguei atrasado na aula... quase não dormira nos dois últimos dias. Estava realmente mal da garganta... Também, psicologicamente abalado!!!

Lembrei-me que, antes de sair do apartamento de Mariinha, havia pego uma caneta e um pedaço de papel, para lhe deixar uma mensagem. Escrevi em desespero: “Pela nossa amizade... não conte nada na turma!”.


Mas, ao entrar na sala de aula, vi carinhas irônicas e sorrisinhos debochados em minha direção...

Alguém me fez sinal para olhar o quadro de giz... Lá estava escrito: “Não haverá apresentação de trabalhos hoje. O professor está com a garganta inflamada. Virá na próxima aula, pois está devidamente medicado. Ele sabe ler BULA !”.

 
 

Post Scriptum

 

“Flogo-Rosa é destinado ao tratamento da vulvovaginite aguda (inflamação dos tecidos da vulva e vagina) associada a sintomas de dor, ardor, prurido e corrimento e doença inflamatória do colo do útero de qualquer tipo ou origem; como auxiliar no tratamento de candidíase (um tipo de micose) e tricomoníase (doença sexualmente transmissível causada por um parasita); como preventivo, no pré e pós-operatório de cirurgia vaginal e na higiene íntima do pós-parto. A administração vulvar e vaginal da benzidamina assegura rápido alívio dos sinais e sintomas de vulvovaginite, rápida melhora do inchaço local e atividade antimicrobiana (contra as bactérias) efetiva, preservando a flora vaginal normal e facilitando a restauração da normalidade da vagina”

 

... é dedicado aos amigos de economia da UFPE!

 
(Reedição)

Antônio Rodrigues de Carvalho Neto  

Antônio NT
Enviado por Antônio NT em 30/09/2019
Reeditado em 23/08/2022
Código do texto: T6757635
Classificação de conteúdo: seguro
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