O Convite

Minha mãe era o que eu costumo chamar de “sargentona.” Severa na criação bem acima do necessário e exagerar nos castigos não lhe era uma fato isolado, mas se faz importante que eu diga que se não fosse daquela forma eu estaria hoje perdido. Eu era um menino sonso e esses são os piores. Sem fazer juízo de condenação, apenas com um olhar mais apurado, minha mãe deveria ter algum grau de ciclotimia não depressiva, pois ela mudava o humor com a velocidade do laser, da água potável à lama e não conhecia o meio caminho, estando sempre nos extremos: Amava demais e odiava na mesma proporção.

Nossa família era relativamente diminuta. Minha mãe só teve um irmão e não deixou filhos. Meu pai não teve irmãos, apenas um primo de segunda geração, meu tio Martins, que embora sendo uma pessoa muito agradável, não nos visitávamos, especialmente porque ele morava no rumo do “Bonosaro”(Bairro Buenos Aires) e o “Bonosaro” era pra lá donde o vento faz a curva, depois do fim do mundo duas léguas de sesmaria. Assim, era uma pessoa que nós o víamos uma vez na vida e outra na morte.

Meu pai partiu quando eu tinha de cinco para seis anos e sou um ovo só no mundo, sem irmãos.

Um dia eu andava despreocupadamente pelo Parque da Bandeira, em Teresina, quando encontrei um envelope banco, sem máculas sobre a rala grama. Certamente estava ali tangido pelo vento, não estava lacrado nem endereçado. Abri e li de forma pausada. Era um convite e dizia de forma sucinta e clara: Martins Dias e Senhora tem a subida honra de lhes convidar para o casamente de sua filha... Igreja de São Benedito... dia... às 19 horas

Ao chegar a casa entreguei o maldito convite a minha mãe, dizendo que encontrara meu tio Martins que me entregara o envelope. Perguntado se eu havia lido, neguei. Não sei o que me dera na cabeça, para fazer aquilo, conhecendo minha mãe como eu a conhecia. “Quem mente, rouba e quem rouba não merecia a confiança de ninguém”, esse era a ladainha que eu ouvia sempre.

Meu pai chamava-se Cipriano Almeida Dias. Ao me registrar, perdi o Dias, por erro do serventuário e de lambuja não recebi o sobrenome “Lopes” de minha mãe. Minha mãe recebera o sobrenome “Ribeiro” por culpa do escrivão e assim eu acabei sendo filho de uma mãe que não existia. Como até então palavra de tabelião era como palavra do Rei, ninguém mudava, ficou o errado como acerto. Pra mim, diante dessas incongruências, não foi difícil imaginar que meu tio se chamava Martins Dias.

Minha mãe era uma pessoa de uma perspicácia aguçada, por isso não consegui entender até hoje, como ela não questionara nada que ora me parece óbvio. Ao contrário disso, ouvi-a dizer: Nós iremos a esse casamento. Gelei! O fato foi que minha mãe ficara deveras contente com o inesperado convite e de minha parte o tormento não poderia ser maior, para piorar, no dia seguinte nós fomos à Casa Vitória, loja de tecidos que ficava na esquina da Rua Simplício Mendes, ao lado do relógio da Praça Rio Branco. Minha mãe comprara tecido para um vestido novo e assim minha sorte estava lacrada.

Espero que os que me dão a honra da leitura saibam o que é maliça. Maliça, malícia ou dormideira é uma plantinha que tem folhas como o tamarindeiro e de alta sensibilidade. Em Teresina a gente costumava tocar-lhe levemente ao talo e dizer: Maliça, tua mãe morreu! Imediatamente as folhas se recolhiam todas, fechando-se umas sobre as outras. Era assim que eu me sentia agora: Murcho.

Até então, não havia a comercialização de roupas feitas, com marcas famosas como hoje e isso era fator positivo para dois tipos de profissões: Costureiras e alfaiates, que via de regras viviam abarrotados de serviços. Como o que dá pra rir, pode dar para chorar, um dia minha mãe chegou em casa dizendo um monte de impropério contra a costureira que não fizera seu vestido. Nem que essa se transformasse em dez, daria conta de fazer a roupa a tempo. Por causa de uma costureira irresponsável estaria abortada a ida ao casamento. Sei não, mas tem momentos em que Ariel, meu anjo da guarda, exagera em bondades comigo! Eu não me dominava de tanto contentamento por ter me livrado dessa enrascada.

Se o tempo é o senhor da história, como dizem, entendo que deva ser melhor estudado este enunciado, pois nem sempre cura tudo, nem sempre sepulta os acontecimentos. Um dia minha mãe chegou e já foi despejando: Senhor Mozaniel Almeida Dias, quero falar com o senhor. Minha mãe nunca perdoara meu pai por ter excluído seu nome de família do meu sobrenome. Quando ela me chamava assim, era como se fosse dar uma surra apenas no filho do marido dela.

- Então o Martins lhe entregou um convite de casamento para ser entregue a mim? Foi isso mesmo? Você confirma ou nega? Acabei de passar a maior vergonha de minha vida, por culpa de sua falta de vergonha nessa cara lambida. Martins ficou duplamente surpreso, especialmente porque ele disse não ter filha e agora me dou contas de que fui enganada numa conversa sem pé nem cabaça... Por sua culpa, ainda arranjei inimizade com a costureira. O senhor roubou minha confiança e isso não vai ficar assim...

Minha mãe não se contentava apenas em bater. Embora eu já soubesse os motivos, ela preferia dizê-los pausadamente: “Euuu nuuuum já lhe faleeeei para nããããããão me contaaaaaaar mentiras?”

Foi assim que fui dormir de couros quentes e o pior de tudo era que eu nem podia chorar. Apanhava calado para não dar azo aos vizinhos para comentários.

São os ossos de minha infância.

Um Piauiense Armengador de Versos
Enviado por Um Piauiense Armengador de Versos em 09/08/2019
Reeditado em 11/08/2019
Código do texto: T6716399
Classificação de conteúdo: seguro