Pescaria no Urumbeva
Fábio é um desses cidadãos que surpreende os não-néscios por suas crendices. Estando em Nioaque - uma das mais antigas cidades do Mato Grosso do Sul, palco do final da Retirada da Laguna, que Visconde de Taunay descreve muito bem em uma de suas obras - num dia de calor intenso do início de outubro de 2003 - porque em Nioaque é quente quase sempre, por estar num vale entre dois rios – o Nioaque e o Urumbeva e por estar entre a Serra de Maracajú e a Serra da Bodoquena -, resolvemos ir pescar no Urumbeva. Apossamo-nos de algumas moelas e algumas frutinhas que agora não me lembro – estas eram para pegar piraputangas. A pé mesmo, cortamos um pasto cheio de assa-peixe, suor escorrendo na testa e uma vontade danada de sentir a fisgada de um bom peixe e vê-lo brigar para se soltar da maldita armadilha. Depois de uma hora de caminhada chegamos nos fundos da chácara do Subtenente Fortes, homem que não sabia pronunciar um período sem falar um ou dois palavrões em cada um deles.
— Oh! Filhos de uma p...! Tô todo assado aqui – apontava para o vão das pernas - esperando vocês, seus pés-de-chumbo. Era assim que ele, quando estava na ativa, chamava os recrutas sem agilidade.
— Ô!!! Cachorro velho! Você não sabe conversar sem no mínimo evitar xingar a mãe da gente? - Respondeu o Fábio.
— Oé! Seu filho da gota-serena , tu é filho de moça,por um acaso?
— Fortes!!! Por favor! Chega desses papos e vamos ao que interessa.
— Você trouxe aquele negócio de gaúcho?
— Que negócio de gaúcho é este, Fortes?
— Ô, Filho duma ..., é o papo?
— Que papo, Fortes, eu trouxe moela.
— Que cheja!
— Ô, Fortes, como é que você conseguiu chegar a subtenente falando tão errado assim?
— Ô, palhaço!!! Do mesmo jeito que tu, seu tamburete-de-zona , chegou a sargento com esse baita barrigão. Falava assim porque o Fábio era baixinho e com aquela barriga de quem comprou uma camisa na promoção e ganhou uma melancia dentro dela.
Palavrões iam e vinham entre os dois, caminhando entre a mata ciliar. Pelo menos o cheiro de relva verde adentrava as nossas narinas, amenizando aquele clima que parecia ser hostil, onde no fundo não passava de brincadeiras. Chegamos à barranca do rio Urumbeva. Cada um se ajeitou como pode para começar a pescaria. Fortes fez o sinal da cruz. Fábio foi o primeiro a alçar o molinete com um pedaço de moela. Em dois tempos fisgou uma bela piraputanga , e, para o susto de todos devolveu-a na água. O Fortes bocudo como sempre, disse:
— ô estrume !!! – batendo com o dedo na parte frontal da cabeça - Ficou doido? Você veio praticar pesca esportiva? Pesque-e-solte?
— Você não entende, Fortes! Em todas as minhas pescarias, o primeiro peixe eu sempre devolvo para que a mãe d’água se agrade de mim e me dê muito outros.
— Ce tá é ficando doido! Eu vou devolver coisa nenhuma! Se essa tal de mãe d’água existe, ela já deve ter muitos peixes, por que ela vai querer os meus?
— Cada um na sua, Fortes. Vou continuar fazendo do meu jeito.
A pescaria continua e o Fábio tira várias piraputangas da água e para a surpresa de muitos tirou um dourado de uns sete quilos e começou a rir do Fortes.
— O!!! Pai d’égua!!! Vê se fica na sua com sua mãe d’água, daqui a pouco eu começo a tirar peixe que o nível do rio vai baixar, Seu Barriga-de-chopp.
— Menos, ô!!! Indouto!!! Menos, viu!!! - dizia o Fábio em tom sarcástico.
Hernando, filho de paraguaios, que resolveu acompanhar, decidiu dar seu pequeno lambari, o seu primeiro peixe, seu pequeno troféu, para a mãe d’água, acreditando que faria a sorte grande como o Fábio. Os peixes nem beliscaram em sua isca, ficando bravo porque não poderia levar para casa a prova de sua primeira fisgada.
— ¡No vais me caguetar para mi papai y mi mamãe! Dígales que no pesqué nada. __ Era uma mistura ferrenha de portugués com espanhol da parte de Hernando.
Fortes pescara umas cinco piraputangas e pronto. Nada mais caiu em seu anzol.
— Ô!!! Pintor de rodapé!!! Quero dar no pé. - Dizia o Fortes.
Nesse meio tempo o Fábio que já havia pescado uns quinze quilos – com o dourado -, resolveu passar para o outro lado do rio em uma espécie de pinguela, uma árvore que havia caído sobre o rio há muito tempo.
— Qué si estrepar ô, barriga-de-nóis-todos?!!! Dizia o Fortes com seu vocabulário sujo.
— Dá um temp... - Fábio não conseguiu concluir. Resvalou o pé na casca podre da madeira e caiu da pinguela. O Fortes, mesmo sabendo que o amigo sabia nadar, lembrou que o mesmo não tinha mais aquela resistência física dos tempos de caserna. Procurou uma vara de taquarussu já caída e procurou lançar para o amigo, que com muita dificuldade conseguiu alcançá-la.
— E os meus peixes, ô Indouto??? Perguntava o Fábio ainda agarrado àquele taquarussu e um tanto ofegante.
— O único peixe que eu tô vendo agora é você!!! E acho que aumentou a barriga com os goles da água do Urumbeva. __Dizia o Fortes, em tom zombeteiro.
Tudo ficou debaixo da água: vara, molinete, uma pequena caixa com apetrechos de pescaria, inclusive os peixes do Fábio. E o Fortes, galhofeiro como ele só, disse:
— É Barrigudo velho!!! A mãe d’água vai se fartar com seus peixes. Já pensou aquele douradão!!! Que banquete, heim!!!
— Só você mesmo, Fortes, para zombar da miséria dos outros assim! Dizia o Fábio torcendo sua camisa.
— Deja el hombre, Fortes, ya perdió muchísimo. ¿Quieres hacer perder la paciencia? Falava em uma nuança lenta e calma, o paraguaio Hernando.
— Tá bom!!! Simbora? Vamos pra casa, fritar minhas poucas piraputangas. – Dizia o Fortes.
Quando já iam uns cinqüenta metros distante do local de onde estavam, ouviu-se uma gargalhada estridente e horripilante de mulher zombeteira.
— Ha-há-há-há-há-há-há-há!!!!
Todos se arrepiaram, até mesmo o gozador Fortes.
— Já entendi. __ Fábio falava em um tom triste e envergonhado. - Eu queria mais do que precisava. Então ela não permitiu que levasse até o que eu já havia pescado.
— É gargaú , você tem razão. Dizia o Fortes, já não tão incrédulo. Parou, colocou todas as traias no chão, meteu a mão no saco de peixes e tirou uma piraputanga e saiu correndo de volta para a barranca do Velho Urumbeva e, como os nioaquenses dizem: pinchou a piraputanga no meio do rio e voltou para junto da turma. No meio do caminho, meio que margeando o rio, deu um estalo na mente do Velho Fortes:
— Aguardem um pouquinho. Eu me lembro que fiz uma seva para peixes aqui nessa curva do rio, vou ver como está. — Disse o Fortes. Todos sentamos em umas moitas de barba-de-bode enquanto o Boca-suja foi ver sua seva. Uns dez minutos, ele – o Fortes – dá um grito, não horripilante, mas de alegria. A correnteza do rio havia trazido até aquela curva, o saco de peixes do Fábio, nela estava enroscado o anzol e esta arrastou a vara com o molinete, só não encontraram a caixa com os apetrechos de pesca. Nenhum dos peixes escapou porque o Fábio, talvez, prevendo que algo poderia acontecer, tinha dado um nó na boca da tal bolsa.
— Foi ela, Fortes!!!!! Foi ela, Seu Velho Falastrão!!! Como é que um peso desses, de mais ou menos quinze quilos iria chegar até aqui só com a força da água?Graças à sua idéia de jogar aquela piraputanga na água.
Todos fomos embora e em casa, já na cidade, Fábio repartiu os peixes, inclusive o belo dourado.
Daquele dia em diante o Velho Fortes começou a jogar o primeiro peixe na água, fosse qual fosse o tamanho da presa.
Muitos dizem que o Velho Urumbeva e o Rio Nioaque não estão mais piscosos como outrora por causa do desrespeito à mãe d’água e da incredulidade. Outros acreditam que foi mesmo a pesca predatória, o desmatamento da mata ciliar e os inseticidas que jogam nas lavouras, nas cabeceiras dos rios que reduziram a pesca. Cada um com seu argumento de defesa, mas a causa em defesa é a mesma.