FELIZ ANO NOVO.
Quando a velha professora de português aposentada molhou o pão adormecido no leite condensado, veio em sua mente a lembrança de antigos e felizes réveillons. O aroma de canela com açúcar inundou o pequeno apartamento da rua da Saudade. Era o que ela mais tinha. Saudade. Dos pais que se foram há uma década, do filho que se foi num acidente, da filha que residia há dois anos no Canadá e do marido que se foi há seis anos. Tinha saudades de lecionar. Uma lágrima caiu e se misturou ao leite, dando àquela rabanada um gosto de saudosismo. Suspirou. Fez café só pra ela. Odiava cozinhar apenas pra ela. Morava sozinha. Amava a solidão, o silêncio e a quietude pra ler. Pintava quadros. Passava horas no estúdio pintando mandalas. Pintara a tela de sua vida com cores bucólicas de melancolia. A cada dois meses participava de um chá da tarde com as antigas amigas professoras. Só isso!! O cartão de sua amiga de faculdade estava sobre a mesa. Selma a convidara para entrar no grupo da terceira idade. Melhor idade, como diziam. Ela não via nada de melhor. Dores no corpo e solidão, era isso que via. No alto de seus 64 janeiros, Mercedes não via um futuro bom como Selma dizia. Imaginara um futuro feliz de aposentadoria ao lado do marido e dos filhos. A vida tomou outro rumo e ela se fechou em seu casulo. Sentou-se na cadeira de balanço na sacada e ficou olhando as crianças no playground. Gostava de chocolate e dos discos do Roberto. Festas de fim de ano não lhe apeteciam. Perdeu a graça. Estava a beira da depressão. Tímida, reservada, caseira, virginiana, detalhista, meticulosa, mantinha a casa em limpeza extrema. Há anos não fazia rabanadas. Decidiu ir a ceia do grupo da melhor idade. Levaria rabanadas. Ligou pra Selma e deu-lhe a notícia. A outra exultou. Antes, iria a missa das 18 horas. Mais por tradição que por devoção. Às 20 horas foi até o centro comunitário. Selma a abraçou, feliz. A assistente social a recebeu com carinho. Os quarenta integrantes do grupo, idem. Forró, comes e bebes, piadas, gincanas, teatro, ela gostou do que viu. Até arriscou dançar forró com Selma. Onze horas. A assistente social encerrou o encontro do grupo. -" Turminha!!! Agora vão pras famílias de vocês. Em janeiro teremos passeio!!! Feliz ano novo!!!!" Gritou a assistente social, com ânimo e exaltação semelhante a um guia turístico. A professora se despediu de Selma. A outra sabia, há anos, que ela não curtia festas. Sempre recusava seus convites pra passar o natal com ela. Os membros do grupo, a maioria mulheres, se abraçavam. Romualdo, 65 anos, desejou-lhe feliz ano novo. Um abraço tímido. Ela sorriu. Percebeu, em segundos, que ele era bonito, um clone de Tarcísio Meira. Camisa bem passada, sapatos novos, dentes perfeitos. Mal o notara durante a ceia. Ela saiu do salão e ganhou a calçada. As casas com as luzes de natal. Os primeiros fogos. Alguém a seguia. Ela acelerou os passos. A perna doía. Selma a convidara pra frequentarem juntas uma academia de ginástica. Deveria ter aceitado, pensou. -"Ei.... Mercedes!!! Sou eu, Romualdo!!!!" Ela suspirou aliviada. Ele a alcançou. -"Estou indo pra rua da Saudade. Nessa direção. Sou novo no bairro." Ela sorriu. -" Eu moro lá. Residencial dos Ipês." Foi a vez dele sorrir. -" Bloco G. Meu apertamento é o 302!!!" Ela se admirou. -" Moro no B!!! No 204!!!" Eles chegaram ao condomínio. -" Aquelas rabanadas estavam divinas. Pena que só comi uma!!!" Disse ele. Ela sorriu no canto da boca. Ele certamente teria esposa. -"Eu fiz as rabanadas!!!" Juntou forças para dizer. -"Parabéns, Mercedes. Ah, que delícia. Lembrei-me de minha falecida Gertrudes. Deus a tenha!!" Ela suspirou. Era viúvo. -"Aceita tomar café comigo, amanhã cedo??? Poderá comer quantas rabanadas quiser!!!" Ele exultou. -" Aceito. Sempre passo essas festas sozinho!!! Meus filhos moram em Sorocaba." No outro dia, ele foi ao apê de sua nova amiga. Ele também gostava de livros. Saiu levando dois livros emprestados. Estava viúvo há dois anos. A amizade entre eles foi crescendo. Romualdo a convidou para suas caminhadas matinais. Ele tinha sido cozinheiro por vinte e cinco anos numa empresa japonesa. Ele fazia jantares maravilhosos e sempre a convidava. Mercedes se matriculou na academia de ginástica. Romualdo e Mercedes passaram a frequentar cafés, teatros e cinemas. Ele se tornou um amigo de todas as horas. Ele a fazia sorrir. Ela o estimulou a fazer um curso supletivo e concluir o segundo grau. Quatro meses depois, ela dormiu no peito dele durante o filme O Senhor dos Anéis, entre almofadas, vinho e um balde de pipoca. Ele dormiu no sofá dela e despertou com o cheiro de café e os raios de sol. Um olhando para o outro, sem palavras, sem amarras. Ela correu para abraçá-lo. Um beijo, um namoro que culminou numa festa de casamento, quatro meses depois, com a presença do grupo da melhor idade. Mercedes ganhou enteados e adotou os netos de Romualdo em seu coração. Mercedes era outra pessoa. Não queriam perder tempo. Queriam ficar juntos e ser felizes. Lua de mel no Canadá. Ela passou a pintar com cores alegres de felicidade e amor. O casal se tornou voluntário do CVV, Centro de Valorização da Vida. Mercedes se tornou catequista na igreja. Adorava estar entre os pequeninos. Apesar dos sofrimentos do passado, percebera que Deus sempre esteve ao seu lado. Ele colocara Selma e Romualdo em seu caminho. A filha decidiu voltar ao Brasil, admirada com a vida nova da mãe. Descobrira que réveillon significa virada, renascimento...um ciclo que se fecha mas outro que nasce, trazendo perspectivas de melhora e de felicidade. Mais que um ano novo, ela teve um feliz eu novo. PRA TODOS, UM FELIZ ANO NOVO!!!!! FIM.