A mágica do adjunto e a força da Fé

Idos de 1970. Moro em um Povoado do município de Miguel Calmon, região muito seca e pobre, localizada no piemonte da Chapada Diamantina, sertão da Bahia. Estamos sob o regime da Ditadura Militar. O Presidente da República é o Gen. Emílio Garrastazu Médici. Nas escolas, ainda se ensina a cantar o Hino Nacional e esta canção do compositor baiano Chico Sepúlveda , enaltecendo a primavera:

“a primavera é uma estação florida, cheia de imenso e divinal fulgor, de flores enche o coração da vida, de vida enche o coração da flor”.

Eu não sei ler, mas gosto de cantarolar essa canção. Aos cinco anos eu sou pureza e fantasia. Pouco conheço do mundo lá fora. Tenho medo de trovão. Sei da importância da chuva e do sol para a colheita, cuido de cabritos, bezerros, galinhas e até lagartixas e colibris acidentados. Crio amigos imaginários e converso longamente com eles ao pé do abacateiro no quintal. Não há televisão, nem energia elétrica. As notícias chegam através do Programa A voz do Brasil, da Rádio Globo do Rio e da Rádio Nacional. Também se ouvem músicas e novelas. O único jornal que circula na região é o “Correio do Sertão”, da cidade de Morro do Chapéu.

Eu sou uma criança tímida, magra e solitária.

Vivo numa família pequena -para a média da época- com pai, mãe e dois irmãos: Valdo e Arlene. Eles são mais velhos e já se ocupam com tarefas domésticas. Sinto-me uma criança feliz e, apesar da pouca idade, tenho consciência dessa sensação de bem estar. Ter uma família, uma casa, algumas bonecas, os animais e um cão –Robalo- são o suficiente para fazer-me feliz. O sarampo assola a região e nós, em fase de recuperação, somos tratados com chás de sabugueiro e glóbulos de homeopatia.

A região encontra-se muito seca e o povo passa dificuldades. Na nossa família não há tanta carência, mas é necessário construir uma casa num terreno distante - chamado Agreste - para passarmos uma temporada, pois, por aqui, não há mais alimento para os animais.

Meus pais resolvem fazer um Adjunto ou Adjuntório.

Trata-se de trabalho coletivo, sem fins lucrativos, efetuado por várias pessoas de uma comunidade, com a proposta de construir uma casa, fazer um roçado, construir uma casa de farinha para ajudar um amigo. O beneficiado tem a obrigação de oferecer café da manhã, almoço e bebidas para o evento. À noite, após o trabalho, os homens se reúnem em rodas de samba, acompanhados por pandeiro e palmas até a madrugada chegar.

Meus pais, Seu César e D Hilda, marcam a data e convidam os amigos para o Adjunto. Antecipadamente engordam o bode, o carneiro e os capões (frangos). Na

semana que antecede o evento compram as bebidas: jurubeba, alcatrão, cachaça e cajuína - um refresco produzido na cidade.

Na véspera as mulheres se reúnem para matar as galinhas, tratar e temperar toda a carne para o almoço.

Debulham feijão, cortam alho, cebola, coentro (tudo do quintal) sendo ajudadas pelas meninas – entre dez e quinze anos - Bel, Linda, Creuza, Guiomar, Marinalva, Vilma e Neta.

Os homens ocupam-se bem cedo de matar os animais maiores e cortar as carnes, conforme recomendações de D Hilda. Depois comem o fígado frito e saem para cuidar de suas tarefas. De vez em quando Seu César serve um golinho de jurubeba para animar a mulherada.

Ficam as mulheres entretidas nos trabalhos e nas conversas.

É necessário um transporte para levar os alimentos, os instrumentos de cozinha e as pessoas que vão ajudar no preparo. Assim, convidam uma figura muito especial na região: Seu Aristides Carreiro, dono do carro de boi². Esse é o meio de transporte mais usado na época. Contamos ainda com a ajuda de sete convidados especiais: Alegre e Marinheiro, no cabeçalho, Navegante e Fantasia, na guia, Toureiro e Mineiro, no meio. São os seis bois do carreto.

Ainda temos mais um convidado: o guia. Garoto pequeno, olhos azuis, ligeiro, muito esperto e espirituoso, ele se chama Adelino. Por suas habilidades e sua simpatia foi apelidado de Peba na Pimenta ou Pebinha.

O carro de boi, com seu canto peculiar, parece conversar com o povo. O guia vai a pé, conduzindo a direção e o Carreiro, sobre a carroça. Chama os bois pelo nome e dá ordens.

Às quatro da manhã saímos de casa. Os homens, as mulheres, as crianças e o carro de boi. Sentada na garupa do cavalo de meu pai, eu observo a escuridão, os vagalumes e as conversas das pessoas. Tenho sono, mas tenho medo de cochilar e cair. O caminho é longo. O dia vai clareando e eu fico deslumbrada com os raios de sol surgindo no horizonte.

É a primeira vez que vejo um nascer de sol.

Às seis horas chegamos ao Agreste. É necessário acender o fogo e preparar o café da rapaziada que começa a chegar. Seu Jerominho, seu Budugo, Seu João Boca Rica (ou João de Caé), Zeca, Tita, Gilberto, Pombo, seu Zezinho e suas piadas, Dió, Dão de Mané Francisco, Chuíte, Vardo, Elson, Zé de Galdino e tantos outros amigos. Quase cem homens... Seu Jerominho, fazedor de versos, faz questão da fatada com a cabeça do bode inteira em seu prato. As mulheres, sorridentes, servem a todos. Em seguida, os homens vão para a mata tirar a madeira para o telhado e as paredes. Outros, com habilidades para pedreiro, cavam a terra e preparam o barro para a massa que será usada para fechar as paredes. Não há blocos, nem tijolos, nem adobe. A parede é feita de pau a pique, técnica usada em construções populares.

Ouvem cantigas de roda ou canções populares como “Amigo” de Waldick Soriano. Essa é a preferida de Zeca.

As meninas ficam ouvindo no rádio Paulo Diniz cantar “I d’ont want stay here” uma homenagem a Caetano Veloso, exilado pela ditadura militar. Cantam alegres e não sabem o que há por trás daquela canção.

O dia transcorre com alegria, muito esforço físico e muita dedicação e amizade. Nada pode ser comparado ao que presencio: homens trabalhando para melhorar a vida de um amigo, sem pretensões políticas nem interesses financeiros ou pessoais. Celebram a amizade, o trabalho, a dignidade e o (puro) companheirismo.

Ao meio dia todos param para almoçar. As mulheres se desdobram para servir aquela quantidade enorme de homens. Muitos deles são extremamente acanhados. Alguns são divertidos, outros colaboram com as senhoras na preparação dos pratos.

Já beirando as três horas da tarde - com a madeira já derrubada - separam as estacas, que precisam para a construção e as pontas de madeira, não utilizadas, são atiçados numa coivara, separadas, para, posteriormente serem retiradas dali e queimadas. Um dos homens, desatento, sem pensar nas consequências, resolve atear fogo naqueles restos de madeira seca.

O fogo começou baixinho, como cantiga de ninar, mas vai subindo o tom até tornar-se um fogaréu tão grande que invade a mata virgem, grande orgulho do meu pai, por possuir árvores centenárias e espécies raras de fauna e flora.

Grande correria.

As mulheres correm a encher de água as panelas (no tanque) e os homens correm com as latas cheias para atear água no fogo na esperança de contê-lo. Mas a força do fogo é muito maior e nada detém aquelas chamas. O fogo entra mata adentro com muita rapidez. A seca da região favorece a força do fogo. Os animais silvestres correm entre os homens, que, por sua vez, correm com latas de água. Os animais no pasto ao lado, assustados, berram como se sentissem dor e desespero também. E os homens continuam a jogar água, incansavelmente. O fogo não cede e avança cada vez mais rápido.

Em meio a este burburinho, Seu César lembra-se do vizinho meio bruxo, rezador e misterioso: seu Antônio Paulo. Chama-o, às pressas, e pede “Meu velho amigo, me ajude! Você conhece tanta reza, tanta oração... salva esta mata e tira esses homens desta luta”.

Ele, serenamente, pede calma, afasta-se de todos, olha para o fogo, levanta o cajado e grita: “Basta!”

Em alguns segundos, misteriosamente, o fogo vai cedendo, cedendo (até o chão). E aquela multidão de mais de cem homens e mulheres ajoelha-se, atordoada pela emoção, pelo medo, pelo alívio e pela grande surpresa.

Nesse dia eu compreendo que a Fé é inquestionável. Não importa o que você carregue de crenças, de valores religiosos, de força espiritual. Não importa seus conceitos, sua interpretação da Bíblia, sua reza, seu oráculo, a imagem que você adora. O desespero do homem leva-o a buscar a Deus e forças misteriosas surgem da fé.

A cachaça, o trabalho, a terra,

a fome, a festa, a força, a luta, a alegria, o medo, a foice, o samba, a coragem e a Fé.

Juntos, todos, companheiros desse adjunto, assistidos pelo olhar dos meus cinco anos.