Doze bolos por dois vinténs de banana
Seu Cosme sustentava sua família com a exploração de uma pequena fazenda situada às margens do rio Jaguaribe no município de mesmo nome. Tinha ainda a ajuda de uma modesta venda onde comercializava produtos para uso doméstico e gêneros de primeira necessidade. Não era bem uma mercearia pois não apresentava o sortimento diversificado exigido para tal denominação. Também não era uma bodega típica pois não vendia cachaça ou qualquer outra bebida alcoólica. Podia ser considerada como uma pequena venda pois comercializava produtos no varejo e também como armazém pois vendia grãos ensacados no atacado.
O mobiliário do pequeno comércio era por demais modesto. Havia algumas prateleiras de madeira tosca para abrigar os produtos expostos, estrados de madeira para empilhar a sacaria e mais grandes latões de metal onde eram acondicionados os principais gêneros alimentícios ali comercializados como milho, arroz, feijão de corda e farinha. O sal era acondicionado em barrica de madeira. O rolo de fumo em corda era depositado em cima do balcão. Naquela época não era ainda produzido açúcar refinado. Havia o açúcar mascavo de rara presença no interior do Ceará. Em substituição ao açúcar era utilizada a tradicional rapadura importada da região do Cariri.
Todo o conjunto era separado dos clientes por um rústico balcão de madeira. O acesso à parte interna delimitada pelo balcão era feito através de uma portinhola atravancada por um ferrolho. Na parte interna do balcão havia uma pequena gaveta onde o proprietário guardava o dinheiro apurado durante o dia. Como não havia grandes riscos de furto pois a parte interna da venda tinha acesso exclusivo do proprietário ou de pessoas de sua extrema confiança, não havia qualquer tipo de fechadura na gaveta onde o dinheiro era guardado provisoriamente ao longo do dia.
Um certo dia, Almir, seu filho mais velho, na época com dez anos de idade, aproveitando uma rápida saída de seu pai, sorrateiramente entrou na parte interna da venda, abriu a gaveta do dinheiro e retirou uma moeda de 100 reis. Manteve-a crispada com os dedos na palma de sua pequena mão e saiu em desabalada carreira descendo a rua na direção da parte baixa da cidade onde corria o rio Jaguaribe. Afinal, o que pretendia o menino tão ansiosamente comprar com a moeda surrupiada? Dois quarteirões adiante havia a pequena quitanda da velha Tentença onde se podia comprar algumas variedades de frutas, produtos raros e caros para a maioria das famílias da cidade. Jaguaribe era localizado numa região semi árida cujo regime de chuvas não permitia o cultivo de fruteiras, normalmente exigentes em solo úmido durante praticamente todo o ano. As frutas comercializadas eram produzidas na Serra do Pereiro, um brejo de altitude propício ao cultivo de fruteiras, localizado a certa distância da cidade. Apenas as famílias endinheiradas tinham a possibilidade de arcar com os elevados preços desses produtos. Não era o caso da família de seu Cosme que supria sua casa com alimentação abundante mas constituída dos produtos comuns à maioria da população de classe média, tais como: arroz, feijão, farinha, milho, rapadura, carne de gado e de criação, leite e derivados.
Ao chegar à quitanda o menino passou a moeda à proprietária e, ansioso, sem voz, apontou para uma penca de banana. Ela cuidadosamente embrulhou as bananas e as entregou ao garoto. Este, de inopino, partiu rapidamente rua abaixo na direção do grande rio. Ao atingir suas barrancas procurou uma frondosa oiticica em busca de abrigo e proteção, desembrulhou o pacote e passou a comer as bananas com sofreguidão. O desejo era de tal dimensão, bem assim o desconhecimento da maneira correta de ingerir a fruta, que o menino a consumiu freneticamente sem sequer remover as cascas. Após comer todas as bananas, quedou-se imóvel, por um longo período, em êxtase, com o estômago saciado, até recobrar a calma e o equilíbrio emocional antes do retorno à sua casa. Estava tranquilo, convicto de que a travessura não seria jamais descoberta por seu pai.
Depois do jantar, na boca da noite, seu Cosme, mulher e filhos se dirigiram, como era de costume, para a calçada, em frente da casa, onde já havia cadeiras para acomodá-los. Ficavam a prosear entre si e com eventuais passantes, conhecidos, ou visitantes esporádicos. Almir, como era costume, ficava sentado na beira da calçada onde permanecia calado, atento à conversa dos adultos.
De repente o menino sentiu um desassossego ao divisar, ainda longe, um vulto de mulher de meia idade caminhando na direção de sua casa vindo da parte baixa da rua.
- Será possível, pensou com seus botões, que diabos esta velha vem fazer aqui a esta hora?
A senhora que estava vindo em sua direção era a dona da quitanda das frutas onde à tarde havia adquirido as bananas. Ela continuou tomando chegada em seu passo cadenciado e lento até parar em frente à sua casa e após cumprimentar seus familiares, sem dar a mínima atenção ao menino, dirigindo-se a seu pai, após desejar boa noite a todos, afirmou: "Estou trazendo o troco que o Almir esqueceu quando, esta tarde, foi comprar bananas em minha venda. Ele me deu uma moeda de cem reis . O preço das bananas é de quarenta reis (2 vinténs), portanto aqui estão os sessenta reis (3 vinténs) de troco que ele esqueceu".
Seu Cosme controlou a sua surpresa com rara frieza e de forma imperceptível aos presentes. Recebeu o "troco" e logo em seguida convidou Tentença para tomar assento. Ela agradeceu, afirmando ter tarefas domésticas ainda a realizar em sua casa e retirou-se no mesmo passo que chegara.
Seu Cosme continuou a conversa com as pessoas da roda como se nada houvesse acontecido. Almir continuou sentado, desconfiado, preocupado, aguardando alguma atitude mais enérgica do pai. Logo que as visitas foram embora seu pai calmamente a ele se dirigiu e numa voz tranquila e sem demonstrar emoção ou irritação determinou que o acompanhasse até seu quarto. Lá chegando começou o interrogatório. Onde havia conseguido a moeda de cem reis? Sem alternativa Almir revelou o furto da moeda no início da tarde, da gaveta do armazém, aproveitando uma rápida ausência do pai. Seu Cosme então passou-lhe um sermão afirmando que ele havia feito uma coisa muito errada. O furto fora uma atitude reprovável e seu objetivo, a compra das bananas, totalmente desnecessário e fútil. Havia fartura de comida em sua casa. Se não comprava banana era devido ao elevado e proibitivo preço. Exigiu dele o compromisso de não mais delinquir. Almir já se sentia aliviado com o fim do sermão e o compromisso feito, imaginando-se livre de algum castigo físico.
Ledo engano. Ao final da reprimenda seu pai proferiu a sentença condenatória: "Agora meu filho você, para não esquecer do compromisso e nunca mais furtar, vai receber doze bolos, seis em cada mão". Calmamente retirou do pé seu chinelo de couro cru, pegou uma das mãos do filho e aplicou um sonoro bolo. Em seguida pegou a outra mão e continuou com o castigo. Assim procedeu, de forma alternada até completar a sentença de doze bolos, seis em cada mão. Almir sentiu apenas os dois primeiros bolos dados em cada uma das mãos. A partir do terceiro a superfície da palma de suas pequeninas mãos estava totalmente insensível.
Era assim que corria a vida naqueles tempos idos que só retornam ao presente nos registros da memória de um velho a rememorar sua infância.