Fuscão Preto
Era uma noite de verão, sábado. O tédio rompia as entranhas de um grupo de adolescentes que resolveram sair para comer uma panqueca em um trailler qualquer, situado no topo da cidade. A vista do local era linda. Era possível enxergar as diversas luzes que compunham o cenário arquitetônico noturno da cidade. Mas ninguém ligava para as luzes, pelo menos no momento de comer. Hora sagrada.
As regras de etiqueta não existiam para aquele povo. Bastava um piscar os olhos para que o outro furasse a garrafa de refrigerante com a faca, fazendo com que a pessoa que fosse servir sujasse toda a sua roupa com o líquido que escorria pelo buraco. Brincadeira de mau gosto. Os outros riam de bom grado. Isso quando garfos e facas não voavam e perfuravam o peito de algum amiguinho.
Conversa vai, conversa vem. A bagunça era geral como de praxe. Até que em determinado momento um apagão assombra todo o bairro. A gritaria foi intensa e tão logo já começaram as piadas:
- Tire a mão do meu pa*, ta doendo!
- Quem tá passando a mão na minha b*nd*?
- Devolve minha carteira seu desgraçado!
Piadas seguidas de gritos eufóricos de pseudo-medo, só para aproveitar a chance de gritar. No trailler, a dona do estabelecimento solta um berro e manda o grupo de jovens terem respeito, já que o lugar era um local de família, e a boa índole sempre deveria prevalecer.
Ofendidos e sem graça, os jovens cogitaram a hipótese de correr no escuro sem pagar. Mas como vários companheiros moravam nas redondezas, a fuga seria um fiasco e sujaria o nome dos pais dois coitados nas praças da cidade. Comeram, pagaram e saíram.
No momento de deixar o estabelecimento, eles resolveram parar e contemplar a escuridão. Não havia nada ao redor e era impossível enxergar qualquer ser vivo que não estivesse há uns 25 centímetros de distancia. Pra piorar, o bairro era famoso por ser uma região um pouco violenta e vagar pelas ruas sem iluminação era pedir pra morrer.
O grupo era pequeno, cerca de oito jovens. Sem acharem solução de como ir embora, alguns deles decidiram dormir na casa de Brendon, um garoto que morava alí pelos arredores. Enquanto isso, Marcos, o mais velho da turma, estava de carro e era o único que dispunha de meios seguros para ir embora, então ele recusou a proposta pra dormir na casa de Brendon e foi até a esquina pegar o seu possante.
Marcos colocou a chave na maçaneta de seu Fusca e girou, mas nada aconteceu. Estaria ele errando a chave ou o buraco devido ao apagão? Bem provável. Continuou tentando e nada.
- Precisa de ajuda? – Pergunta um dos amigos.
- A porta deve estar emperrada. Ela trava assim mesmo.
Nisso, Marcos segurou a maçaneta com mais força e tentava puxar a porta, forçando o pé contra ela para ganhar impulso. Nada. A porta não abria.
Neste instante, a porta da casa da frente se abre e um homem gordo, sem camisa, com um pedaço de pau na mão surge e diz com uma voz nada gentil:
- Quê que você tá querendo muleque!? Ta tentando roubar meu carro assim, na cara dura?
Marcos, que já não era de muita conversa ficou mudo. Sem saber o que fazer, olhou ao redor procurando uma luz nas trevas e finalmente percebeu o seu erro. Andou lentamente e, sem graça, virou pro dono e disse:
- Oh! O meu Fusca é aquele ali! - E se dirigiu para um outro automóvel idêntico ao que ele tentara arrombar, estacionado há uns 15 metros de distancia.
O homem ficou sem reação no portão de sua casa, enquanto o jovem ligava o carro e sumia na escuridão. Por pouco ele não perdera a vida por causa de um simples engano.
Enquanto isso, o pobre Brendon levou os amigos pra dormirem na sua casa. Em cima de uma das camas, havia uma televisão que eles haviam tirado da estante para colocar o computador. Um dos encapetados que estavam ali, chamado João Cândido, estava brincando de equilibrar o eletrodoméstico com os pés, quando, de repente, coloca um pouquinho de força a mais e a TV colide contra o chão. Tudo que o povo ouviu na escuridão foi o último suspiro dos fusíveis da televisão deixando o plano material. Sorte que as trevas tamparam as lágrimas que escorriam pela face de Brendon, prevendo o que acontecia quando sua mãe recebesse a notícia do ocorrido.