Maracutaia Financeira
Walcir III no intuito de espantar a raiva, acomodou-se em sua sala misteriosa que insistia em chamar de porão. Ali não corria risco de ser incomodado. Aquele local de acesso restrito, tinha estampado na porta um aviso: “Não entre! Pode ser perigoso!”.
Em curtos intervalos, suas mãos eram jogadas violentamente contra a mesa, manifestando sua ira. Lembrara que aquelas mãos, dias atrás, contabilizava pilas por pilas, moeda corrente na cidade.
O enorme cômodo ficava localizado nos fundos da única instituição financeira da cidade. Uma espécie de banco do povo, onde Walcir III tirava sua renda e lucros duvidosos. Recebia contas, guardava dinheiro e o mais importante: concedia empréstimos.
Ele não perdia uma chance e lucrava de forma desonesta, fruto das altas taxas de juros, provenientes dos empréstimos feitos por contratos ilícitos.
Ele agia sempre da mesma forma. Escolhia um morador e retirava dele quantas “pilas” fossem preciso para deixar o cliente endividado e desesperado. Em seguida colocava seu plano em ação. Oferecia empréstimo e omitia os juros. Usava uma fala macia e ocultava as tarifas adicionais. Um roubo minucioso. Como os clientes precisavam das “pilas”, seguiam as orientações diabólicas de Walcir III.
Somente depois de muitos anos, o banqueiro sentiu a dor de perder algumas “pilas”. Não imaginava que doía tanto. Seu merecido castigo começou quando resolveu explorar uma nova vítima da maracutaia financeira: a jovem Saramita.
Felizmente, para o bem do povo, ele mexeu com a pessoa certa e na hora certa. Saramita respirava justiça e conhecimento. Ela encrencava e batia boca com qualquer um. Valorizava seus direitos. Não engolia desaforo e nem aceitava prejuízo.
Saramita era respeitada por todos, odiada por uns e amada por outros. Recebia bons e maus fluídos. Circulava tranquilamente, com a consciência equilibrada, entre amigos e inimigos. As pessoas da direita admirava-a. As da esquerda, tinham pavor.
E o tormento de Saramita começou quando não entendia o motivo por não conseguir voltar a ter controle financeiro, desde o primeiro empréstimo no banco. Estranhou. Por mais que fosse econômica, começou a preocupar-se. Estava enlouquecendo. Observava através do extrato bancário que suas economias definhavam drasticamente. Desconfiou. Refletiu e chegou à conclusão que tinha algo de errado.
Apesar de jovem, sonhava com a aposentadoria Tranquila. Queria usar das economias para cuidar da saúde quando preciso. Sabia que nem todos os medicamentos eram distribuídos pelo Sistema Único de Saúde.
Diante daquele ciclo interminável, Saramita resolveu conversar com uma amiga que passou pela mesma situação. Partiu em busca de respostas:
- Dilã, ajude-me a resolver um problema financeiro?
- Desculpe, mas não posso! Por enquanto não. Estou por finalizar um empréstimo.
- Quando você terminar, logo terá de fazer outro, certo?
- Lá vem você com suas teorias. Não estava nem pensando. Queria esquecer. Mas tem razão. Quando penso que estou livre, preciso ir ao banco e pedir ajuda ao Walcir III.
Saramita começou a andar de um lado a outro. A amiga observava a cena. Sabia que era encrenqueira e quando ficava daquela forma, viria novidade.
Dilã ficou curiosa. Era um assunto sério e de interesse de todos no lugarejo. Os cidadãos viviam endividados. Perguntou qual era a bola da vez. Saramita respondeu:
- Dilã, você pode ajudar. Já que trabalha aqui em frente ao banco, qual é o horário que o Walcir III se ausenta em maior tempo?
- Ficou louca? Discordo! Assaltar ou roubar o banco não vai resolver o seu problema financeiro. Será presa.
- Não seja boba! Só preciso saber o que tem naquela sala misteriosa com o aviso de “Não entre! Pode ser perigoso”.
- Há é só isso? Não é preciso entrar lá não. Eu sei.
- Como sabe? O que tem lá?
- Outro dia, um marchand e amigo do Walcir III, veio até a agência e como ele não estava, deliciou dois sorvetes e conversou uns instantes.
- O que isto tem a ver com o que tem no porão.
- Ele perguntou se eu conhecia o Walcir III e eu disse que era amiga dele. Trocávamos confidências. Perguntou se eu conhecia a sala cheia de valiosas obras de artes.
- Então é isso! Está explicado porque ninguém pode entrar lá. O que mais o marchand disse?
- Convencido de que eu conhecia a sala, quando saiu passou por aqui, tomou mais um sorvete e reafirmou que no cômodo misterioso tinha de fato, diversas preciosidades.
- Descobri o problema da cidade! São as maracutaias financeiras do Walcir III.
- Não fale assim. Em outras vezes concordei. Agradeço em nome dos moradores por ter resolvido questões de nosso interesse. Mas o que tem a ver a sala com nossas dívidas?
Saramita apertou os olhos e sorriu. Pediu que Dilã aguardasse e confiasse. Considerou que suas desconfianças tinham sentido. Ele enriquecia e o povo empobrecia porque literalmente roubava dinheiro e investia o lucro indevido na sala misteriosa.
Saramita decidiu cobrar explicações. Determinada, atravessou a rua e em frente a instituição financeira, solicitou a presença de Walcir III.
Ele veio sorrindo e com os braços abertos em sua direção. Ela esquivou-se ligeiramente do abraço falso. Porém foi educada. Cumprimentou-o com um simples aperto de mão. Segura e ríspida, disse-lhe com voz firme:
- Acabou a farra! Não pode tirar nem meia “pila” de minha conta. Chegou ao fim sua cota de injustiça. Quero que apresente o balanço do banco. Exijo transparência.
Walcir III soltou um largo sorriso diante da jovem. Moradores curiosos com aquele conflito oral, aglomeraram na porta do banco, surpresos com a atitude e intrepidez de Saramita. Ninguém jamais teve coragem de questiona-lo. E mesmo em circunstâncias desfavoráveis, ele retrucou as investidas de Saramita e ameaçou-a:
- Sará... Samitaaaa! Não diga bobagens. Está gastando minutos de minha atenção e vou cobrar por isso. Talvez eu desconte em sua conta. E de todos que estão aí à toa.
As pessoas assustaram-se. Preparavam-se para sair quando Saramita, pediu que ninguém arredasse o pé. Aquela atitude deixou Walcir III ainda mais irritado.
- Como tem coragem de desafiar-me diante dos meus queridos e amados clientes? Precisa preocupar-se com você. Com suas dívidas que estão carregadinhas de novas taxas.
Ela, nervosa, não se conteve e xingou-o em bom som:
- Salafrário! Caloteiro! Injusto! – falou aos berros. E continuou - como pode fazer isto? Não tem vergonha? É um enganador e isto precisa mudar! Vai mudar! E agora!
Walcir III cruzou os braços e ouvia todas as acusações. E ela continuou:
- Quero que preste contas. Isto é lei! O Ministério Público e a Polícia Federal vão adorar tomar conhecimento da existência de maracutaias financeiras em nossa cidade.
Walcir III espantou-se. As acusações eram verdadeiras. Seus trambiques estavam prestes a serem descobertos. O golpe financeiro, iniciado por seu pai, Walcir II, estava com os dias contados. A tensão aumentou quando um morador soltou a voz e gritou forte:
- É verdade da Saramita! Temos direito a informação. Estamos sendo lesados.
Em seguida outras vozes começaram a surgir. Várias. E por fim gritaram em coro:
- “Devolva o nosso dinheiro”.
- “Devolva o nosso dinheiro”.
Walcir III preocupou-se. Teve medo da multidão. Saramita aproveitou o estado de êxtase e apoio dos moradores para estender seus questionamentos:
- Por que só você fica com a documentação dos empréstimos? Isto não existe. Sempre quando chega a fatura, vem com valor acima do combinado. Aí é tarde. Temos que pagar. Isto é uma injustiça!
Walcir III teve fôlego e coragem. Partiu para a investida com o intuito de se safar das acusações, mesmo consciente que tinham fundamentos. Tentou se defender:
- Injusto? Eu? Esforço-me para ajudar a todos! Todos! E recebo esta ingratidão? Guardo com amor e carinho o dinheiro de vocês e fazem isto comigo?
Um silêncio tomou conta daquele ambiente. Walcir III baixou a cabeça, como se estivesse magoado e ofendido. Tentou forçar lágrimas, mas não conseguiu nem uma gota. Os olhos continuavam secos. Tinha confiança que a trama jamais seria descoberta e esqueceu de bolar um plano B, como ensaiar e simular um choro. Saramita não perdoou:
- Esta conversa não cola mais. Queremos nosso dinheiro de volta. E já!
Walcir III não desistiu. Chamou Saramita para uma conversa ao pé do ouvido. Sussurrou, suplicando que ela parasse com aquela história. Disse que devolveria suas “pilas” e com acréscimos. Justificou que não teria condições de indenizar a todos.
Saramita retribuiu o largo sorriso. Walcir III, inicialmente, acreditava que aquilo era um sim. Enganou-se. A jovem, acostumada a batalhar pelos ideais coletivos, não aceitou a proposta esdrúxula. Afirmou ter conhecimento de sua sala misteriosa que ele chamava de porão. E na falta de dinheiro, poderia vender alguns de seus valiosos pertences.
Um calafrio subiu por todo o corpo de Walcir III. Teve a sensação que pilhas inteiras de “pilas” evaporavam. Triste e sem forças, resolveu negociar a devolução do dinheiro de cada um dos correntistas.
Em poucas horas, uma fila quilométrica formou-se na porta do banco. E Walcir III atendeu um a um, sob o olhar de Saramita. Ela fiscalizava tudo, sentadinha ao seu lado, com uma calculadora e prancheta cheia de documentos nas mãos.
Walcir III teve uma grande baixa em sua fortuna. Por sorte, não precisou mexer em seu patrimônio que incrivelmente, parte dele, foi construído legalmente, através do trabalho digno, por seu avô, Walcir I. E se ele estivesse vivo, ficaria decepcionado com o apetite insaciável por dinheiro de Walcir III e Walcir II, que saiu ileso do caso, por ter se desligado da vida carnal há algumas décadas.
Walcir III aprendeu a lição. E após ressarcir os clientes, cansado, entrou no banco e foi direto para a sala misteriosa que quase virou porão. Acomodou-se em uma luxuosa poltrona, diante da mesa de mármore e começou a lamentar. Tentava se acalmar depois de ter devolvido o dinheiro. Compreendeu a necessidade de ter cautela e ética nos negócios para não comprometer o seu patrimônio duvidoso.