MENOS UM DIA
Era um gole de cerveja, uma prosa e o olho no relógio. Uma prosa, o olho no relógio e um gole de cerveja. O olho no relógio, o gole de cerveja e uma prosa até os amigos se irritarem com aquela situação:
- Anísio, que desespero é esse? Toda vez que saímos para distrair e divertir você age de forma inusitada. Tem outros compromissos?
- Há tempo percebido a atitude do Anísio, só não tive coragem de comentar. Agora que o Alfredão tocou no assunto, aproveito a oportunidade e pergunto: você tem algum distúrbio? Alguma síndrome do tempo?
Apesar das observações e cobranças de Alfredão e Cidinha, Anísio mantinha o seu ritual. Não parava de conferir as horas. Era como uma lei. Sua. Totalmente sua. Elaborada e seguida com extrema atenção e rigidez.
Alfredão, o insensível da turma, não se conformava e distribuía suas críticas:
- Vocês é que não devem lembrar. Memórias fracas e corrompidas. Esse cara é louco e cheio de manias. Isso não existe! Todo fim de noite é isto. Vocês vão ver. Podem anotar. Daqui a pouco levanta e sai às pressas.
- Tenha calma Alfredão. Não podemos julgar o Anísio dessa forma. Fazer juízo de valor sem entender os fatos. Talvez seja algum trauma de infância.
Anísio olhou para Cidinha e soltou um breve sorriso. Permaneceu calado. Não importava com os comentários. Tinha seus motivos para tal comportamento. E as conversas não paravam.
- A Cidinha tem razão! É isso! Trauma de infância. Como não pensamos nisso antes? Em sua transição de criança para jovem e depois a fase adulta, os pais dele sempre marcavam horário para chegar em casa. Eram rigorosos. E ele ficou traumatizado. Estou certo Anísio?
Anísio escutava aquelas suposições esdrúxulas e continuava indiferente. Sem deixar de fitar o relógio. Direcionou os olhos para Alfredão. Percebeu que ele tinha na face a expressão de vitorioso, por achar ter descoberto, junto de Cidinha, os motivos para o seu comportamento considerado anormal. Para infelicidade e decepção de ambos, Anísio respirou fundo e balançou o dedo direito com sinal negativo. E todos, em sintonia, tomaram mais um gole de cerveja.
Bolota, amigo de longas datas de Anísio, conhecia bem sua história familiar, apesar de não ter conhecimento do motivo que o fazia agir daquela maneira. Porém, tratou logo de intervir no assunto:
- Cidinha e Alfredão, não é isso! Os pais de Anísio foram embora para o exterior quando ele ainda era criança. 11 ou 12 anos, por aí. Estou correto amigo? – Bolota tocou carinhosamente os ombros de Anísio, confortando-o. E continuou – não se abale! Em breve eles voltarão.
- Obrigado Bolota. Tenho esperança e torço para que retornem logo. Sinto uma enorme saudade.
Na mesa todos ficaram em silêncio. Ouviam-se apenas as conversas paralelas vindas dos frequentadores das mesas ao redor.
Alfredão pensou rápido. Não queria deixar aquele assunto interessante morrer de forma prematura. Estufou o peito e disse com o tom de voz alterado em função da influência e poder da bebida sobre sua consciência:
- Já sei! Foram os avós! Os avós! Eram rigorosos com os horários. Por isso nasceu este trauma. Desvendei o mistério. – Alfredão virou o copo de cerveja de uma só vez e sinalizou com o braço para chamar o garçom – traga mais uma porque eu mereço!
Cidinha refletiu, com certa dificuldade, sobre os comentários de Alfredão. Um pouco distante do seu estado psicológico normal, começou a esbanjar alegria em alternância com a tristeza e deu uma tagarelada brusca no copo de cerveja. Sem esforço, sentiu os olhos marejados e começou a piscar, tentando se livrar daquelas lágrimas. E sem esconder sua revolta, se expôs, rastejando a voz fina e cansada:
- Não! Avós não Alfredão! Avós são seres dóceis. Amáveis e maleáveis. Ainda mais numa situação dessa que o Anísio enfrentou. Que enfrenta! Luta e não desiste! Bravo Anísio! Coitado! Pobre homem! Abandonado pelos pais ainda na infância. Sozinho no mundo! Solitário! Mundo injusto! Sujo! Cruel!...
- Cidinha, acho que já bebeu demais. Não é motivo para tanto. O Anísio não é um pobre coitado. É forte! Sente saudades dos pais. Mas sabe que em breve eles estarão de volta. Vamos torcer que isso ocorra o mais rápido possível.
- Muito obrigado pelo apoio Bolota. Tento ser forte. Mas não se preocupem comigo. E Cidinha, por favor, pare com este choro desnecessário. Estou bem. Um dia esclareço o motivo de minha preocupação e não desvincular os olhos do relógio. Agora me desculpem porque está na hora. Tenho que partir. Até mais para vocês. Depois pago a minha parte na conta. Estou atrasado.
Anísio levantou rapidamente e foi embora. Os amigos acenaram e ficaram apenas observando aquele corpo bem-vestido subir as ruas e desaparecer.
Ao chegar em seu reduto de descanso, Anísio fitou o relógio. Ainda faltavam alguns minutos para a meia-noite. Ansioso, começou a andar pelos cômodos da casa para passar o tempo.
Ao perceber que chegara a hora, como de costume, tomou posse de uma caneta esferográfica e apertou os passos em direção a sala, onde um belo calendário ocupava o espaço na parede. Aproximou-se. Bem perto, ergueu o objeto fino e pontudo e atacou a folha colorida.
Anísio respirou aliviado. Permaneceu com o olhar fixo em direção ao calendário. Comemorou em voz baixa:
- Você já era!
Após a ação bem planejada, Anísio virou-se e desenvolveu alguns passos. Parou de costas a poucos metros da folha pendurada na parede. Virou o pescoço vagarosamente. Esticou o dedo indicador e mirou, especificamente em direção aos dias seguintes depois daqueles que ele já havia rabiscado. E avisou aos gritos:
- Vocês serão os próximos!
A frase que brotou dos lábios de Anísio veio acompanhada de sua face feliz e cheia de esperança. Em seguida soltou uma gargalhada sarcástica. Guardou a caneta na gaveta da estante e foi para o quarto.
Antes de dormir, seguiu a tradição. Tirou a foto dos pais debaixo do travesseiro. Olhou-a com carinho. Beijou-a e disse com voz dócil e tranquila:
- Menos um dia!