O CORAÇÃO DE DOM PEDRO
O coração de Dom Pedro I Imperador do Brasil está na cidade do Porto. Guardado a cinco chaves numa ânfora, bem protegido pelos religiosos responsáveis por sua guarda na Igreja da Lapa desde 1837.
O jovem imperador Dom Pedro I, que proclamou a independência do Brasil, ao retornara a Portugal ocupando o trono como o rei D.Pedro IV. Foi um homem temperamental, destemido e justo, soube ser grato a aqueles que o apoiavam em sua missão de maior mandatário do seu país. Na luta contra o irmão que ascendeu indevidamente a coroa portuguesa, que lhe era de direto. Tivera o apoio dos tripeiros do Porto, e como gratidão, nos seus últimos momentos de vida, em seu leito de morte, doou seu coração à cidade, pelo apoio a ele concedido na conquista do trono português.
“Até na morte D. Pedro continuou dividido entre Brasil e Portugal. Em 1972, ano do Sesquicentenário da Independência, seus restos mortais foram trasladados da Igreja de São Vicente de Fora, local do sepultamento em Lisboa, para o Mausoléu do Ipiranga, em São Paulo, onde hoje é reverenciado pelos brasileiros. Seu coração, no entanto, permanece guardado na Igreja da Lapa, situada na heróica cidade do Porto e fundada no século 18 por iniciativa de um músico e missionário paulista, o padre Ângelo de Sequeira.
Seu último desejo antes de morrer, em sinal de gratidão aos “tripeiros”, como são carinhosamente conhecidos os moradores do Porto e em cuja companhia havia enfrentado os momentos mais incertos e difíceis de sua vida, na guerra contra o irmão D. Miguel.
D. Pedro morreu nos braços da imperatriz Amélia às 14h30 de 24 de setembro de 1834, faltando duas semanas e meia para completar 36 anos. A autópsia revelou um quadro devastador. A tuberculose tinha consumido todo o pulmão esquerdo, inundado por um líquido negro e sanguinolento. Apenas uma minúscula parte de seu pulmão ainda funcionava. O coração e o fígado estavam hipertrofiados, ou seja, bem maiores do que o normal. Os rins e o baço amolecidos começavam a se dissolver.
Os transtornos físicos, que já eram antigos em D. Pedro, agravaram-se na guerra contra o irmão. Durante o cerco do Porto começou a sentir cansaço, irregularidade na respiração, palpitações noturnas e sobressaltos ao acordar. Um edema nos pés indicava problemas circulatórios. “D. Pedro ao contrário do muitos julgavam ser um homem fisicamente robusto, forte, mas a verdade, porém, era outra. Alimentava-se mal, repousava pouco, gastava-se excessivamente” Epilético desde a infância, portador de deficiência renal, vomitava com freqüência. Aventureiro e destemido, partira diversas costelas em quedas a cavalo. As doenças venéreas eram recorrentes, como ele próprio registrara nas famosas cartas à Marquesa de Santos.
Diante de um quadro de saúde tão frágil, seus dias finais foram surpreendentes. D. Pedro enfrentou a morte como viveu, mantendo um ritmo intenso de atividades. No seu último compromisso oficial, a 27 de julho, tinha ido ao Porto. Foi recebido com fogos, repicar de sinos, salvas de canhões e festejos na rua. Ali passou dez dias animados e felizes. Ao partir sabia que jamais voltaria: “Adeus Porto, nunca mais te verei”, teria dito. A saúde piorava rapidamente. Pálido, tinha a pele macilenta e precocemente envelhecida. A longa barba escondia o rosto magro, no qual se destacavam os olhos fundos, sem brilho e emoldurados por grossas olheiras.
Nas primeiras semanas de setembro, teve uma noite repleta de maus presságios. Sonhou que morreria no dia 21. Contou isso à imperatriz Amélia. Errou por apenas 72 horas. Enquanto agonizava no Palácio de Queluz, construído no século anterior pelo seu avô, D. Pedro III de Portugal –, e no mesmo leito em que a mãe, Carlota Joaquina, o dera à luz – promoveu sucessivas reuniões com deputados, ministros e auxiliares, nas quais tomou decisões, pediu providências, distribuiu conselhos e, por fim, prestou homenagens a todos aqueles que julgavam merecedores de sua gratidão. A seu pedido, os deputados decretaram a maioridade da rainha D. Maria II, cujo primeiro ato oficial foi conceder ao pai a Grã Cruz da Torre e Espada, a mais alta honraria portuguesa.
Ainda no leito de morte, aconselhou a filha que concedesse liberdade a todos os presos políticos, sem exceção. Pediu também que, no seu enterro, não houvesse exéquias reais, como mandava o protocolo. Queria ser enterrado em caixão de madeira simples, como um soldado, comandante do exército português. Em seguida, mandou chamar um soldado do Batalhão de Caçadores cinco, famoso pela resistência no Cerco do Porto, de que era coronel honorário. A escolha recaiu sobre o soldado número 82, Manuel Pereira, de 37 anos, nascido na ilha de São Jorge, nos Açores. Recostado nas almofadas da cama, D. Pedro lançou o braço direito sobre o pescoço do companheiro de trincheiras e lhe sussurrou: “Transmite aos teus camaradas este abraço em sinal da justa saudade que me acompanha neste momento, e do apreço em que sempre tive seus relevantes serviços”. Com as pernas trêmulas, o soldado teve um choro convulsivo e foi consolado pelo imperador moribundo.
Algumas semanas mais tarde, um menino de olhar tristonho e melancólico, o futuro imperador Pedro II do Brasil, recebeu duas cartas no Rio de Janeiro. Traziam notícias da morte do pai. A primeira, da madrasta Amélia, dava detalhes da autópsia e enviava, enfim, a mecha de cabelo que o pequeno príncipe havia pedido algum tempo antes a D. Pedro na tentativa de amenizar as saudades que o dilaceravam. A segunda carta era de José Bonifácio, parceiro do pai na Independência brasileira: “Hoje (…) eu vou dar os pêsames pela irreparável perda de seu augusto pai, o meu amigo. (…) D. Pedro não morreu, só morrem os homens vulgares, e não os heróis… sua alma imortal vive no céu para fazer a felicidade futura do Brasil…”
Por um curioso fenômeno fotoquímico, o coração de D. Pedro se expande continuamente dentro da ânfora de cristal em que foi depositado após a sua morte, em 1834. Hoje, está tão deformado que a Venerável Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, responsável pela sua conservação, decidiu resguardá-lo da curiosidade pública mantendo-o lacrado na escuridão atrás de uma parede da igreja. O último brasileiro autorizado a vê-lo foi o presidente Fernando Henrique Cardoso, em visita oficial à cidade. Desde então, a lápide de pedra que guarda a ânfora nunca mais foi aberta.
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As estátuas de D Pedro IV sobre um cavalo ocupam também lugares de destaque nas duas maiores cidades português. No Porto está situada na Praça da Liberdade, a antiga Praça Nova, onde foram enforcados e esquartejados os chefes liberais após a ascensão de D. Miguel ao trono. Em Lisboa, pode ser observada na Praça do Rossio, na Cidade Baixa. Os dois monumentos geralmente produzem sensação de estranheza nos turistas brasileiros em Portugal, que não reconhecem nas feições do rei ali talhado em bronze o herói do Grito do Ipiranga. Curiosamente, os portugueses de hoje tampouco sabem a respeito do jovial príncipe quase imberbe que fez a Independência brasileira. Com os cabelos encaracolados mais longos, a calva levemente pronunciada e o olhar austero, o D. Pedro IV de Portugal parece mais velho, mais sábio e mais sofrido do que o D. Pedro I do Brasil. É como se, depois de abdicar ao trono brasileiro, tivesse reencarnado em Portugal na pele de algum de seus ancestrais mais remotos. Em 1834, o coronel inglês Hugh Owen o descreveu da seguinte forma: “Longa e cerrada barba preta emoldurava o pálido, bexigoso e enérgico rosto do imperador; o olhar firme, penetrante e altivo encarava a pessoa a quem se dirigia e constrangia-a muitas vezes a baixar os olhos”.
“Como um espírito luminoso de duas silhuetas, repartido na morte entre as duas pátrias em que nasceu, viveu, lutou e morreu, D. Pedro permanece hoje como um laço de aproximação entre brasileiros e portugueses.”
(Na foto a igreja da Lapa ciDade do porto MARÇO DE 2015)
O coração de Dom Pedro I Imperador do Brasil está na cidade do Porto. Guardado a cinco chaves numa ânfora, bem protegido pelos religiosos responsáveis por sua guarda na Igreja da Lapa desde 1837.
O jovem imperador Dom Pedro I, que proclamou a independência do Brasil, ao retornara a Portugal ocupando o trono como o rei D.Pedro IV. Foi um homem temperamental, destemido e justo, soube ser grato a aqueles que o apoiavam em sua missão de maior mandatário do seu país. Na luta contra o irmão que ascendeu indevidamente a coroa portuguesa, que lhe era de direto. Tivera o apoio dos tripeiros do Porto, e como gratidão, nos seus últimos momentos de vida, em seu leito de morte, doou seu coração à cidade, pelo apoio a ele concedido na conquista do trono português.
“Até na morte D. Pedro continuou dividido entre Brasil e Portugal. Em 1972, ano do Sesquicentenário da Independência, seus restos mortais foram trasladados da Igreja de São Vicente de Fora, local do sepultamento em Lisboa, para o Mausoléu do Ipiranga, em São Paulo, onde hoje é reverenciado pelos brasileiros. Seu coração, no entanto, permanece guardado na Igreja da Lapa, situada na heróica cidade do Porto e fundada no século 18 por iniciativa de um músico e missionário paulista, o padre Ângelo de Sequeira.
Seu último desejo antes de morrer, em sinal de gratidão aos “tripeiros”, como são carinhosamente conhecidos os moradores do Porto e em cuja companhia havia enfrentado os momentos mais incertos e difíceis de sua vida, na guerra contra o irmão D. Miguel.
D. Pedro morreu nos braços da imperatriz Amélia às 14h30 de 24 de setembro de 1834, faltando duas semanas e meia para completar 36 anos. A autópsia revelou um quadro devastador. A tuberculose tinha consumido todo o pulmão esquerdo, inundado por um líquido negro e sanguinolento. Apenas uma minúscula parte de seu pulmão ainda funcionava. O coração e o fígado estavam hipertrofiados, ou seja, bem maiores do que o normal. Os rins e o baço amolecidos começavam a se dissolver.
Os transtornos físicos, que já eram antigos em D. Pedro, agravaram-se na guerra contra o irmão. Durante o cerco do Porto começou a sentir cansaço, irregularidade na respiração, palpitações noturnas e sobressaltos ao acordar. Um edema nos pés indicava problemas circulatórios. “D. Pedro ao contrário do muitos julgavam ser um homem fisicamente robusto, forte, mas a verdade, porém, era outra. Alimentava-se mal, repousava pouco, gastava-se excessivamente” Epilético desde a infância, portador de deficiência renal, vomitava com freqüência. Aventureiro e destemido, partira diversas costelas em quedas a cavalo. As doenças venéreas eram recorrentes, como ele próprio registrara nas famosas cartas à Marquesa de Santos.
Diante de um quadro de saúde tão frágil, seus dias finais foram surpreendentes. D. Pedro enfrentou a morte como viveu, mantendo um ritmo intenso de atividades. No seu último compromisso oficial, a 27 de julho, tinha ido ao Porto. Foi recebido com fogos, repicar de sinos, salvas de canhões e festejos na rua. Ali passou dez dias animados e felizes. Ao partir sabia que jamais voltaria: “Adeus Porto, nunca mais te verei”, teria dito. A saúde piorava rapidamente. Pálido, tinha a pele macilenta e precocemente envelhecida. A longa barba escondia o rosto magro, no qual se destacavam os olhos fundos, sem brilho e emoldurados por grossas olheiras.
Nas primeiras semanas de setembro, teve uma noite repleta de maus presságios. Sonhou que morreria no dia 21. Contou isso à imperatriz Amélia. Errou por apenas 72 horas. Enquanto agonizava no Palácio de Queluz, construído no século anterior pelo seu avô, D. Pedro III de Portugal –, e no mesmo leito em que a mãe, Carlota Joaquina, o dera à luz – promoveu sucessivas reuniões com deputados, ministros e auxiliares, nas quais tomou decisões, pediu providências, distribuiu conselhos e, por fim, prestou homenagens a todos aqueles que julgavam merecedores de sua gratidão. A seu pedido, os deputados decretaram a maioridade da rainha D. Maria II, cujo primeiro ato oficial foi conceder ao pai a Grã Cruz da Torre e Espada, a mais alta honraria portuguesa.
Ainda no leito de morte, aconselhou a filha que concedesse liberdade a todos os presos políticos, sem exceção. Pediu também que, no seu enterro, não houvesse exéquias reais, como mandava o protocolo. Queria ser enterrado em caixão de madeira simples, como um soldado, comandante do exército português. Em seguida, mandou chamar um soldado do Batalhão de Caçadores cinco, famoso pela resistência no Cerco do Porto, de que era coronel honorário. A escolha recaiu sobre o soldado número 82, Manuel Pereira, de 37 anos, nascido na ilha de São Jorge, nos Açores. Recostado nas almofadas da cama, D. Pedro lançou o braço direito sobre o pescoço do companheiro de trincheiras e lhe sussurrou: “Transmite aos teus camaradas este abraço em sinal da justa saudade que me acompanha neste momento, e do apreço em que sempre tive seus relevantes serviços”. Com as pernas trêmulas, o soldado teve um choro convulsivo e foi consolado pelo imperador moribundo.
Algumas semanas mais tarde, um menino de olhar tristonho e melancólico, o futuro imperador Pedro II do Brasil, recebeu duas cartas no Rio de Janeiro. Traziam notícias da morte do pai. A primeira, da madrasta Amélia, dava detalhes da autópsia e enviava, enfim, a mecha de cabelo que o pequeno príncipe havia pedido algum tempo antes a D. Pedro na tentativa de amenizar as saudades que o dilaceravam. A segunda carta era de José Bonifácio, parceiro do pai na Independência brasileira: “Hoje (…) eu vou dar os pêsames pela irreparável perda de seu augusto pai, o meu amigo. (…) D. Pedro não morreu, só morrem os homens vulgares, e não os heróis… sua alma imortal vive no céu para fazer a felicidade futura do Brasil…”
Por um curioso fenômeno fotoquímico, o coração de D. Pedro se expande continuamente dentro da ânfora de cristal em que foi depositado após a sua morte, em 1834. Hoje, está tão deformado que a Venerável Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, responsável pela sua conservação, decidiu resguardá-lo da curiosidade pública mantendo-o lacrado na escuridão atrás de uma parede da igreja. O último brasileiro autorizado a vê-lo foi o presidente Fernando Henrique Cardoso, em visita oficial à cidade. Desde então, a lápide de pedra que guarda a ânfora nunca mais foi aberta.
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As estátuas de D Pedro IV sobre um cavalo ocupam também lugares de destaque nas duas maiores cidades português. No Porto está situada na Praça da Liberdade, a antiga Praça Nova, onde foram enforcados e esquartejados os chefes liberais após a ascensão de D. Miguel ao trono. Em Lisboa, pode ser observada na Praça do Rossio, na Cidade Baixa. Os dois monumentos geralmente produzem sensação de estranheza nos turistas brasileiros em Portugal, que não reconhecem nas feições do rei ali talhado em bronze o herói do Grito do Ipiranga. Curiosamente, os portugueses de hoje tampouco sabem a respeito do jovial príncipe quase imberbe que fez a Independência brasileira. Com os cabelos encaracolados mais longos, a calva levemente pronunciada e o olhar austero, o D. Pedro IV de Portugal parece mais velho, mais sábio e mais sofrido do que o D. Pedro I do Brasil. É como se, depois de abdicar ao trono brasileiro, tivesse reencarnado em Portugal na pele de algum de seus ancestrais mais remotos. Em 1834, o coronel inglês Hugh Owen o descreveu da seguinte forma: “Longa e cerrada barba preta emoldurava o pálido, bexigoso e enérgico rosto do imperador; o olhar firme, penetrante e altivo encarava a pessoa a quem se dirigia e constrangia-a muitas vezes a baixar os olhos”.
“Como um espírito luminoso de duas silhuetas, repartido na morte entre as duas pátrias em que nasceu, viveu, lutou e morreu, D. Pedro permanece hoje como um laço de aproximação entre brasileiros e portugueses.”
(Na foto a igreja da Lapa ciDade do porto MARÇO DE 2015)