O Soldado em Desvantagem
E foi justo naquela manhã cinza de outubro de 1996, nos primórdios do novo quartel do Tiro de Guerra da pacata Araxá, interior das Minas Gerais, que esse causo aconteceu...
A segunda turma do serviço militar daquele ano estava impossível. Desde a primeira ordem unida às exatas 06 da manhã que a indisciplina tomava conta do pelotão. Barbas por fazer, coturnos sujos, conversas paralelas e até piadinhas sob as instruções oriundas da sargenteação. Um terror para qualquer chefe de instrução.
Foi quando o primeiro sargento Montandon surgiu de dentro do quartel e flagrou a indisciplinada turma pipocando pelo pátio. Centrado e de mãos para trás ele observou por um instante os seus recrutas. Dentre eles o franzino atirador 076, que em estado febril desde a noite anterior, mal conseguia manter-se de pé e gozava de um singular momento de preguiça esparramado nas escadas que lavavam até a intendência.
Montandon, homem justo e grande líder, relevou a situação e convocou novamente a tropa à ordem. Porém a alegria de tratar-se de um sábado, o que era vital para a juventude da época, impediu que os rapazes tomassem ciência da seriedade do momento, o que enervaria qualquer líder na ocasião.
O comandante elevou o tom e atentou a turma para um barranco que ficava a cerca de 300 metros do pátio do quartel. Barranco este que só seria alcançado depois de vencido um arado de terra e cascalho de larga dimensão. Então a instrução foi clara:
“... Todos devem correr até aquele barranco, bater uma das mãos nele e voltar às suas posições. Os dez últimos que chegarem ficarão duas semanas na faxina do quartel...”
Talvez na história da humanidade nunca se tenha visto tantos homens de verde em disparada. Pareciam um monte bonecos de posto correndo com os braços abertos e as línguas de fora. O recruta 76, coitado, mal conseguiu uma boa arrancada e ficou metros para trás dos velozes companheiros. Seguindo de cabeça baixa, temeu pela sua vida e pela faxina no quartel quando viu aquela parede de soldados com as mãos sujas de terra já retornando em sua direção.
Sem mais chances e nem opções, 76 encarnou o espírito do malandro e brecou ali mesmo onde estava, rapando a palma da mão pelo chão e empreendendo o retorno junto dos triunfantes companheiros. Em meio à bagunça, ele não foi visto praticando seu plano de sobreviver ao atropelamento.
Enfim a ordem unida se restabeleceu, mas a poeira levantada pelos soldados mais corajosos de toda a região levaria horas para se assentar. Montandon avaliou as mãos dos seus recrutas uma a uma e por fim não aplicou o castigo aos dez últimos colocados, tendo em vista que a disciplina voltou a reinar sobre os 151 guerreiros daquela tropa novamente. A instrução se findou sem alterações e 76 não foi dedurado por nenhum irmão de farda.
Ainda hoje se contam histórias sobre a imortal segunda turma de 1996, que arrancou lágrimas de muitos recrutas e dos três grandes sargentos de instrução no fim de dezembro, quando se findou a última ordem unida.
Eu deixo este texto em homenagem aos três sargentos daquele ano, que muito nos ensinaram sobre companheirismo, dedicação, virtude e espírito de corpo: sargentos Mauro, Orlando e Montandon. E também para mim, que tinha o primeiro número depois do 75...
Texto: Ivan Anderson