Os Esqueletos da Corte


A Corte era um lugar atormentado.
A começar pela razão de sua existência: foi criada com base na dor alheia, na incapacidade humana de cumprir as regras e de respeitar seus semelhantes.
Assim são as Casas das Leis.
Existem para fazer valer o que o ser humano não consegue, para colocar ordem quando o caráter e a conduta ferem os direitos.
Assim também deveriam ser as normas e todos que as estudam, as professam, as escolhem como profissão.
Mas não é bem assim. A justiça, é cega sim, mas pela vaidade.
Portanto, a Corte, seja ela qual for, oscila entre fazer valer algumas regras amenizando a desgraça alheia ou alimentar a vaidade dos que se julgam superiores a ela própria.
Um jogo de poder, hipocrisia, mesclado com algumas almas puras e bem intencionadas.
Qualquer lugar assim está fadado ao fracasso. De alguns pelo menos.
Com aquela Corte não era diferente.
Havia dois tipos de pessoa que transitavam por seus corredores: as primeiras, deslumbradas com as cores negras das vestimentas de pompa e com os cargos superiores; sorriam todos os dias e viviam abobalhadas na busca constante pelos holofotes e pela impecável carreira. Estes, faziam absolutamente tudo para se manter no ápice dos cargos de nomes glamourosos e reuniões infindáveis onde não se resolvia absolutamente nada, mas todos podiam exibir seus valores, conquistas e egos.
Os segundos, eram mais fracos. Viviam fieis aos seus valores, não se maculavam com a atmosfera pútrida da vaidade exaltada e conseguiam, a duras penas, ter vida própria e alheia aos ditames da Casa.
Quando ousavam questionar as regras que eram aplicadas de acordo com as conveniências e é claro, com o poder, sofriam e se não fossem espertos eram sumariamente eliminados. Ora pelo descaso, ora pela doença.
Era neste ambiente digno de uma nova obra de Dante que a Corte agora parecia padecer.
Talvez porque há muito acumulava em suas paredes as emanações doentias dos gritos dos que sofriam.
Talvez porque encerrasse em seus ambientes a verdade crua para a qual fôra criada.
Talvez porque negociasse condutas e nelas, se vendiam e se compravam almas.
Enfim... ninguém sabia. O fato era que sucumbia.
Pelos seus gabinetes sombrios pessoas acumulavam receitas médicas controladas para suportar o dia a dia.
À noite, viviam atormentadas em seus sonhos e só dormiam à base de pílulas.
Gritavam nos consultórios médicos, tremiam, suavam; queriam esquecer da rua, do número, do prédio, dos casos.
As licenças médicas aumentavam, as ausências se tornavam absurdas, as tentativas contra a própria vida já não chocavam.
E a Corte pululava.
Os fortes, de garras afiadas, gargalhavam.
Os fracos caíam em todas as esquinas, mas se vendiam pela soma na conta bancária no final de cada mês.
E no meio deste caos ninguém entendia porque em um ambiente tão cheio de glamour havia tanta desgraça.
Um dia o mistério foi solucionado.
Movidos pelo sentimento mais fútil mas anunciado como extremamente necessário, resolveu-se ampliar o já tão espaçoso local de reuniões.
Uma só sala já não bastava, era preciso mais uma.
Mas não uma sala qualquer.
Não uma coisinha à toa, mas sim, um salão amplo, ricamente decorado que fizesse jus às figuras tão nobres que por ali circulariam e em meio a um café e outro servido em exóticos jogos de porcelana, decidiriam sobre a vida e a morte dos menos capazes.
Partiu-se, então, para as obras.
Os engenheiros foram acionados, os arquitetos, intimados. Escalas de trabalho e plantão forma expedidas e é claro, os cofres públicos saqueados.
Na segunda semana de escavação, porém, veio a tragédia.
Não seria possível continuar cavando ali.
Em meio às tubulações, lama e pedra, um osso longo e branco chamava atenção.
Humano por certo. E não era o único.
Os trabalhadores movidos pelas ordens mas retidos pelos temores, se recusavam a cavar.
Era preciso. Os dignitários precisavam de um lugar para pensar. Que saísse a tal sala de reuniões de qualquer forma!
Trabalharam por fim. Sob os auspícios da punição velada, cavaram em meio à contrariedade, maculando suas crenças.
Os esqueletos apareceram aos montes e não eram aqueles que habitavam os armários da superfície.
A polícia foi acionada. A imprensa foi deixada de fora, pois não caía bem ter cadáveres soterrados sob a casa da Lei.
No total, as ossadas somaram nove corpos.
Depois de um breve relatório, os ossos foram levados, os trabalhadores retomaram suas ferramentas e assim como quem se livra de qualquer lixo incômodo, o caso foi esquecido.
Hoje a sala é reluzente e a Corte segue feliz. 
Quem ali serve a água e o café de todos os dias, não ousa comentar os cadáveres que estavam soterrados sobre o porcelanato de primeira.
Ninguém fala, ninguém sabe, ninguém ousa questionar.
No fundo, os mortos tiveram muita sorte. Sob aquele prédio e seus miasmas, jamais descansariam em paz.
Azar dos que ficaram. Ninguém contou a eles que a causa do problema havia sido eliminada. Continuam com suas atividades mecânicas feito espectros ambulantes; movidos à base de muita tarja preta, sorrisos amarelos e o constante medo de também acabarem soterrados sob o piso de uma sala qualquer.
Correção: uma sala qualquer, não! Aquela era uma sala muito da especial.
Nela se tomou milhares de cafés, se falou sobre quase tudo, foi decidido absolutamente nada, mas deixou a Casa das Leis um pouco mais bonita e meia dúzia de pessoas acreditando que eram muito mais importantes.
A Casa das Leis, nunca se abala. Agora está mais forte e limpa e segue implacável.
Edeni Mendes da Rocha
Enviado por Edeni Mendes da Rocha em 12/11/2014
Código do texto: T5032706
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