183 – AS AMARGURAS DA VIDA...
Noite escura, poucas estrelas enfeitavam o firmamento, lá vai o Chico Carabina montado na sua mula trotona rompendo léguas de distâncias, na cabeça o pensamento firme na venda do Zé da Mariquinha, esta venda se situava no entroncamento de várias estradas, e todas eram de chão batido, e todas eram esburacadas e poeirentas, mas ele seguia desapercebido de todo aquele contorno, o que queria mesmo era se entregar, se deliciar.
Aquele lugarejo tinha má fama, na frente funcionava uma venda, mas nos seus fundilhos havia vários quartos, aquilo na verdade era um meretrício, algumas mulheres ali faziam seu ponto pra ganhar alguns trocados, do pouco que ganhavam ainda tinham que pagar o aluguel dos quartos pro proprietário, que também lucrava com a venda de bebidas para os peões que ali arranchavam, elas ficavam na espera, comiam e bebiam e jogavam carteado em seus momentos de desfazer, aquelas pobres criaturas sempre estavam devendo pro dono da venda, assim tornavam verdadeiras escravas da sua sina, permaneciam naquela labuta até que a sua saúde se arruinasse, quando eram descartadas, principalmente quando pegavam doenças da rua ou engravidavam, então eram violentamente expulsas daquela morada, elas vagueavam pelo estradão a fora na procura de um alento, de um canto pra morrer!
O Chico Carabina era casado, tinha uma boa esposa, trabalhadeira, sabia até costurar, era uma costureira de mão cheia, bonita, jovem, então porque que ele teimava em frequentar aquela casa amaldiçoada?
Porque ele bebia tanto?
Bebia tanto que muitas vezes precisavam colocar ele sobre a mula pra sua casa voltar, e ela, bicho matreiro já sabia o caminho da volta de cor e salteado, debandava...
É que ele carregava lá nas suas entranhas um terrível segredo, e esse segredo o machucava, o torturava, corroía por dentro o pobre coitado, no desespero apertado corria ele pra venda do estradão e em outros braços procurava desafogar daquela situação, procurava em vão esquecer daquilo que teimava ser lembrado, que falava aos seus ouvidos, que passeava pela sua cachola.
Vou te contar o segredo, nos tempos idos, este rapaz, o Chico Carabina já tinha este apelido, pois se afeiçoou naquela arma, e dela não desgrudava pra nada, embora nunca soubessem que ele tivesse atirado em alguém, era o capataz de uma fazenda criadeira de gado zebu, cortava os cerrados na busca dos marruais, e o patrão tinha por ele uma confiança danada, e foi esta confiança danada que arruinou a sua vida, pois o patrão tendo feito mal a uma mocinha, filha de um dos empregados da fazenda, agora arrependido, com medo de reparações e represálias por parte da família da moça, queria porque queria arrumar um casamento pra ela, queria se safar daquela situação, e sendo assim, viu no Chico Carabina a solução para o seu problema, sendo ele um caboclo de sua inteira confiança, lhe contou do acontecido, e fez uma tentadora proposta, se ele por uma determinada quantia de dinheiro casaria com a mocinha desvirginada, e falou em altas somas, falou da festa do casamento e prometeu mundos e fundos, a princípio o Chico Carabina recusou a proposta, mas aquela tentação da fortuna fácil revirou nos seus miolos, e por outro lado o patrão implorando para que aceitasse a proposta, o tinhoso que também vive entrelaçado nas almas imprudentes deste sertão, abriu os olhos do rapaz para riqueza ao alcance da mão, já divisando o dinheiro na matula, ele foi se aquiescendo, foi amolecendo e aceitando aquele pérfido alvitre, no ligeiro ligeiro, ele logo logo passou a visitar a casa daquela mocinha, aquela que não era mais moça, fingia ser moça, e ele fingia não saber do segredo dela, e ela dele se engraçou e ele fingia que dela tinha engraçado!
Marcado o casamento, o patrão não mediu quantias, parecia que estava até casando uma de suas filhas, gastou o que precisava e o que não precisava, estava lavando as mãos, se livrando de uma encrenca futura, e como presente de casamento colocou num envelope a quantia estipulada e matreiramente colocou no bolso do paletó do noivo!
Com aquele dinheiro Chico Carabina comprou um pedaço de terra, comprou também algumas cabeças de gado, colocou porcos no chiqueiro, galinhas no quintal, e pensou que a vida não fosse lhe cobrar aquele aceitamento tão vil!
Com o passar do tempo, a sua consciência teimava em acusá-lo de ter-se vendido, que ele não era homem de verdade, que era um pedaço de homem, e aquilo foi agigantando nas suas entranhas e a governar o seu sentido, perdia noites de sono, agora olhava para esposa com olhos diferenciados, olhos indagadores, olhar que feria, que intimidava, passou a abusar da violência no trato da esposa, passou a odiar a esposa, foi um ódio gradativo, mas crescente, como se a esposa culpa alguma tivesse naquele arranjado casamento, numa noite, se sentindo abafado por aquele pensar maluco, teve outra ideia mais maluca ainda, ir para o bordel, e a venda do estradão não mais saia do seu pensamento, ressabiado como quem está fazendo uma arte muito grande, chegou à venda um tanto sem jeito, um tanto perdido, sem saber por onde entrar no assunto, por onde começar, limpou a garganta, tossiu, pediu uma cachaça, e por fim perguntou pelas donas de rua que ali faziam ponto, e lhe foi apontado a direção dos fundos das venda, numa pequena sala era onde as ditas cujas se reuniam, precisou da ajuda de muita pinga para suportar aquelas pobre raparigas, mal cheirosas, desprovidas de qualquer beleza, mas assim que se embebedou caiu na gandaia, se sentiu macho, bebeu, dançou, gozou, se sentiu realizado!
E quanto mais ele frequentava o venda do Zé da Mariquinha, mais ele bebia, e quanto mais bebia, mais violento ficava com a esposa, por motivos banais gritava com ela, colocava defeito em tudo que ela fazia, dizia que comida igual a que ela fazia nem porco comia, e ela suportava toda aquela selvageria calada, ciente da sua sina, era o preço que estava pagando, tudo em nome de um bom casamento e de uma honra perdida antes de casar, vivia no purgatório, mas compreendia toda aquela dor que acometia o seu homem...
Pensava...
Com o tempo ele se acalmara e se acostumará com a ideia.
Ledo engano, quanto mais o tempo passava, mais ele frequentava a venda, mais ele bebia e mais ameaçador e violento ele se tornava...
Nas suas idas e vindas à venda, tinia e retinia no seu pensamento a imagem do seu patrão desfrutando em primeira mão da sua esposa, que ele se lambuzava na lambança deixada por outro, que a sua atitude não era de um homem de verdade, ao aceitar desempenhar tão desairoso papel ele se corrompeu, se desvalorizou, era um traste, uma maldição...
E assim por dias a fio aquelas lembranças eram verdadeiros punhais que feriam profundamente as suas entranhas, nesta época foi marejando de forma lenta, mas contínua, a ideia de assassinar a sua esposa, aquele pensamento maligno foi envenenando a sua alma, foi apoderando da sua vontade!
Queria sangrar e beber o sangue dela, somente assim se livraria deste pesadelo, e no silêncio da madrugada passou a afiar a sua peixeira, tão afiada ficou que dava até para fazer a barba com ela.
Um dia, chegando já no alvorecer em casa, mais bêbado que de costume, determinado a matar a sua esposa, a hora era aquela, acariciou o cabo da sua peixeira e adentrou na sua choupana, a mulher ouvindo barulho se levantou e foi violentamente agarrada pelos cabelos, sendo arrastada para fora da casa, e entre ameaças e safanões ela mais parecia uma boneca em suas mãos, tamanha era a violência com que a conduzia, e ele falou em alto e em bom tom:
- Hoje vou te sangrar macutena, quero beber o seu sangue... Coisa ruim, você é a desgraça da minha vida! Você é toda a minha infelicidade, você me arruinou, me rebaixou, você me destruiu...
E ela sem mostrar medo algum, sem tremer ou gaguejar, simplesmente rasgou a parte de cima do seu vestido deixando à mostra a taba do pescoço e o sangrador, firme e decidida ela falou:
- Marido! Se você acha que tenho culpa alguma neste seu sofrer, enterre já esta sua peixeira no meu sangrador, beba do meu sangue e seja feliz, pois não sou digna de viver!
O Chico Carabina que estava com uma das mãos agarrando a mulher pelos cabelos, enquanto a outra mão segurava a peixeira vingadora, ameaçou sangrá-la várias vezes, maldisse tantas coisas, amaldiçoou o dia em que o patrão lhe fez aquela proposta tão indecente, foi quando aquela mão que segurava a faca como num encanto começou pesar, e foi ficando cada vez mais pesada, tão pesada que estirou, então ele soltou dos cabelos dela, se arrependeu amargamente da sua atitude, tão arrependido ficou que chorou baixinho...
- Mulher! Se tiver um culpado nesta situação eu sou o culpado, sou o único culpado desta minha desgraça!!
- Mulher! Te imploro um último serviço, vai lá na cozinha, frita uns ovos com bastante cebola, coloca pedaços de linguiça de porco, mistura tudo na farinha de mandioca e coloca num embornal, vou pegar algumas trocas de roupa e vou embora pra não mais voltar!
Já estava alvorecendo quando ele partiu, ela se manteve firme, não chorou ou lamentou, estava ciente que no passado errara, e que tinha que pagar por aquele erro, só tardiamente descobriu que não fora mais que uma laranja que o patrão chupou o suco e jogou fora o bagaço, agora era tarde para lamentar, mas tinha que contemporizar, naqueles dias era uma menina em flor, tinha sonhos de embriaguez, sonhava em ser madame patroa, sonhou em ocupar o lugar da esposa do fazendeiro, só mais tarde é que compreendeu o tanto que estava enganada!
Algumas estrelas ainda brilhavam no céu, o sol estava se mostrando, ele rompeu estradão a fora, lá na frente onde o céu se mistura com a copa das árvores ele estacou, olhou para trás, acenou com a mão pela última vez, ela também acenou, ele fez menção em voltar, mas a ânsia da liberdade falou mais alto em seu coração e ele se fez em nada na distância do olhar.
Por um longo tempo ela ficou na porta da sua casa esperando que ele voltasse, tinha se afeiçoado a ele, alguma coisa dizia que seu coração estava apaixonado, então ela se desabou num choro estremecedor, soluçava em altos brados, seus ombros sacolejavam de tanto que chorava, jurou que nenhum outro homem buliria no seu coração, também não contou pra ele que estava grávida, e jurou por todos os santos que faria o possível e o impossível para educar aquela criança da melhor forma possível, se viraria do avesso, mas educaria aquela criança com todo esmero e dedicação!
E o tempo foi passando, e como o tempo passa depressa, e nestas voltas que esta vida dá, o Chico Carabina apareceu, ressuscitou... O que será que o ele encontrou na sua antiga morada?
Bem, esse é um outro causo, que fica para um outro dia...