177 - A SERRA DA NOIVA...

No sertão do Vai Quem Qué, na sede da fazenda, uma noiva, Iracema, acompanhada de sua mãe e de várias ajudantes, calmamente confecciona o seu vestido de noiva, e tudo tinha que ser feito ao seu gosto e ao seu feitio, e o vestido era longo, cheio de rendas e babados, estava planejado, o casamento estava marcado para o fim do mês de maio, céu de inicio de abril num azul profundo a tudo abençoando, e ela experimentava continuadamente o vestido, se não gostava de um detalhe, desmanchava e se punha a coser no capricho e na paciência, das vezes achava o vestido um tanto rodado, das vezes um tanto justo, mas tudo ia se amoldando aos seus caprichos de moça sonhadora.

Um vizinho de cerca, rapaz zureta que sempre tivera os olhos cumpridos para a moça, amargava silenciosamente a sua derrota tal qual uma cascavel que há meses não come e aguarda pacientemente a sua presa, sonhara tanto em casar com ela, mas nunca tivera sucesso em suas empreitadas, nunca fora agradável aos seus olhos, remoia de inveja do noivo, estava cego de ciúmes, era tanta inveja que o tinhoso atiçou coisas ruins no seu pensar, e num plano diabólico cismou ele de matar o noivo, somente assim se livraria do concorrente, e assim teria o caminho livre para conquistá-la.

Terminado o vestido, que cuidadosamente foi escondido bem longe dos olhos do noivo, a crença geral era que dava um azar danado se ele visse o vestido de noiva antes do dia do casamento, teria que ser uma surpresa, e eles que tanto se amavam não viam a hora de juntarem o seus cacos, era assim diziam, e numa noite toda enluarada o noivo já gozando de mais liberdades na casa da noiva, permaneceu até mais tarde na companhia da mesma, e pela primeira vez ao se despedir deu-lhe um longo e afetuoso beijo, que a deixou nas nuvens entre suspiros e contentamentos, corações disparados, outros tantos beijos e outros tantos abraços se seguiram, e ele com a voz embargada, todo trêmulo, mas com o coração inundado em felicidades se despediu!

Montou no seu cavalo, acenou pra ela diversas vezes, acenou até que as sombras da noite o guardaram na distancia, mas a maldição da inveja espreitava lá no bem distante, a lua se fez em clarão, e ele avançou pelo estradão afora cantarolando velhas canções sertanejas, estava vivendo os dias mais belos e felizes da sua vida, e no bem longe, numa bifurcação da estrada encostou o seu cavalo na porteira para abri-la, foi quando se ouviu um estampido, um tiro, e a desgraça maior é que foi um tiro certeiro, matador, o noivo mortalmente ferido se contorceu por sobre cavalo, golfadas de sangue já escorriam pela sua boca, agoniado pela dor ele perdeu os sentidos e caiu, estatelando no chão num som abafado e lúgubre, mas o assassino não se conteve, se aproximou do noivo e disparou a sua arma por diversas vezes para ter a certeza absoluta que tinha realmente matado aquela criatura que tanto invejara, que estava lhe tirando a única mulher que amava...

No silêncio do seu quarto, a noiva como que adivinhando do acontecido se estremeceu, teve um suadouro friorento, entre arrepios e dúvidas se sentiu sufocada, suspirando profundamente profetizou, alguma desgraça está a caminho, e espero que nada de ruim aconteça com o meu noivo, que Deus o proteja, que a Virgem Maria o abençoe.

A família do noivo não teve preocupações para com ele, imaginaram que o mesmo havia dormido na casa da noiva, foi quando um caminhante esbarrou naquele corpo frio, sem vida, caído junto à porteira, todas as vantagens para o assassino que pode se retirar na mais absoluta segurança, e ciente que seu feito jamais seria descoberto.

No momento do enterro a moça apareceu paramentada, usava o vestido de noiva, e na mão tinha um buquê de flores e isto causou espanto a todos, e por mais paradoxal que possa parecer não derramava uma só lágrima, não choramingava, nem lamentava, se parecia distante, conformada, e correu a boca pequena o boato que moça não gostava tanto assim do seu noivo, ao chegar ao cemitério do vilarejo ela pediu que tirassem a tampa do caixão, que adentrasse com o mesmo destampado, e no caminho da sepultura ela segurou com toda ternura na mão do defunto parecendo que estava entrando na igreja rumo ao altar, firmemente caminhou ao seu lado e não desgarrou da mão do seu amado, no momento do sepultamento sem emoção alguma ela dele se despediu, e assim que o caixão baixou para as profundezas da terra, Iracema atirou sobre o esquife o buquê de flores, que prontamente foi coberto pela terra.

Iracema zelosamente guardou o seu vestido de noiva em uma mala, e não mais saiu de seu quarto a não ser para pequenas necessidades, e lá permaneceu trancada, absorta, distante de todos e de tudo, mas nas suas entranhas ela tinha claramente o pressentimento de quem era o assassino do seu amado.

E o moço, o vizinho de cerca, o carrasco do seu noivo, sorrateiramente passou a frequentar a casa da moça, a todos agradando, a todos cativando, e a todos perguntava por ela, mas ela persistia na sua clausura e no seu isolamento, como que ausente estivesse deste mundo, e estava.

Nas redondezas da fazenda havia uma cercania de serras e nestas se destacava um penhasco íngreme, de altura elevada, e na calada da noite a moça se levantou, agarrou a mala que continha o seu vestido de noiva, e partiu...

A noite se fez mais bela, enfeitou o firmamento com diamantes de luzes e cores, uma lua curiosa mais se aproximou iluminando todo o contorno, tão claro ficou que dia parecia, e ela caminhou por longas horas, o orvalho da madrugada molhava seus cabelos, mas estava insensível a tudo isto, não se sentia cansada, nem teve medo algum, tinha a mente fixada no alto do penhasco, no precipício, no abismo, e depois de muito sacrifício e de muito esforço ela conseguiu chegar ao topo do penhasco, se sentou em uma pedra para descansar, se refazendo de tamanho esforço que despendera para ali chegar, calmamente, como que estivesse em seu quarto, se despiu, e depois foi se ajeitando dentro do vestido de noiva, aquele que confeccionara com tanto esmero e carinho, já vestida, soltou seu longos e encaracolados cabelos, e se começou a falar baixinho, falava consigo mesmo, mas aos poucos sua voz foi-se alterando, agora falava mais alto, falava para o abismo que estava na sua frente e que silenciosamente a escutava, indagava por onde andaria o seu amor, clamava pela sua companhia, e então ela começou a dançar, a princípio lentamente, mas o ritmo foi se alterando, foi-se aumentando e ela agora aos gritos chamava pelo seu amado, rodopiava num frenesi voluptuoso e gracioso, e a cada rodada mais se aproximava da beirada do abismo, completamente enlouquecida, enlouquecera na paixão, no amor e na saudade, e como num encanto o céu se abriu e na sua mente entorpecida viu claramente descer para perto do si o seu amado noivo, que com um largo sorriso a abraçou e a beijou, se abraçaram e beijaram outras tantas vezes, abraçados contemplavam aquela natureza surreal e silenciosa, e ele a convidou pra dançar, a rodar, rodaram, rodopiaram em círculos com tamanha velocidade que se elevaram do alto do rochedo rumo ao infinito, e no mesmo instante o corpo de Iracema do alto do penhasco se precipitou para a morte certeira...

Diante do acontecido aquele penhasco ficou conhecido como a serra da noiva...

E assim é conhecido até os dias de hoje...

Tornou-se um lugar encantado, nas noites enluaradas muitas pessoas viram lá no alto do penhasco dois vultos com vestes brancas, fulgurantes, eram os noivos, das vezes por um longo tempo eles ficavam imóveis e contemplativos, das vezes se abraçando e beijando, das vezes dançando, e no final sempre rodopiavam em círculos cada vez mais velozes, é assim que se arribavam para o infinito...

Mas tudo neste mundo se ajusta, tudo o que se faz tem o seu retorno, é aqui nesta Terra que se paga por todos os pecados, e o assassino tinha culpa no cartório, tinha que pagar... Ah! Se tinha...

No enterro da moça, de longe ele a tudo acompanhava, chorava copiosamente, amargamente, e passou a não dormir, estava assombrado, vultos não o deixavam adormecer, sombras o perseguiam dia e noite, e neste frenesi diabólico, ele paulatinamente foi se enfraquecendo, se enlouquecendo, falava sozinho, gesticulava para o vento, pedia insistentemente perdão pelos seus atos, fora o causador da morte de duas pessoas inocentes, passava as noites com a lamparina acessa, tentativa inútil de espantar os fantasmas que atormentavam o seu viver, e numa tarde qualquer arriou o seu cavalo, levou consigo também uma velha corda...

E debaixo de uma antiga gameleira, ainda montado em seu cavalo, certificou que a corda estava bem amarrada num dos galhos, e serenamente com a outra ponta da corda envolveu o seu pescoço num nó de arrochar, e açoitou violentamente o seu cavalo que espavorido se desvencilhou daquele cavalheiro, cujo corpo pendurado na árvore ficou, balançava ao vento...

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 15/02/2014
Reeditado em 17/02/2014
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