SINHÁ DÚCA II
Já é de todo sabido a fama de Sinhá Dúca na admi-
nistração de benzeduras, garrafadas e como parteira de
mão cheia também. Afora suas altercações com as coisas do
outro mundo, posto que a Sinhazinha era mesmo cheia das
coragens!
Mas mesmo Sinhá Dúca tinha lá seu calcanhar de aqui-
les. Ah se não tinha! Barata não podia ver, não que tives-
se medo, mas tinha um verdadeiro asco! A mais insignifi -
cante baratinha lhe causava a atroz dúvida: deixar o inse-
to passear por sua casa, assoalho, paredes ou esmigalhar a
danada no golpe de sua sandália? A primeira opção lhe cau-
sava arrepios, a segunda vômitos!
No fim Sinhá Dúca sempre resolvia a questão no golpe
de sandália - "Ora bolas, já enfrentei de tudo nesse mundo
até lobisomen, não vou arregar prá uma baratinha dos cape-
tas" - dizia ela. Quanto ao vômito, quando lhe vinha bas -
tava-lhe vigiar a dentadura, prá modo não ir junto e as-
sunto encerrado esse da baratinha!
Porém caso mais complicado era do "pio de coruja".
Pois Sinhá não ficava exposta ao pio de coruja nem a de-
creto! Costumava dizer:
- Aquele que se deixasse expôr a pio de coruja, vi -
rava um vai-prá-trás mais sem jeito ou maneira de endirei-
tar, pois pio de coruja é um mau-agouro dos quintos. Capaz
de secar pimenteira, emprobecer gente enricada, endoidecer
gente estudada, adoecer gente muito bem alimentada. Pois
mais de dúzia desses casos, já tinha visto nesse viver!
Acontece que todo finalzinho de tarde, Sinhá Dúca e
algumas comadres, reuniam-se para os bordados e claro..as
fofocas. E não é que volta-e-meia, durante os bordados, u-
ma ou outra corujinha vinha dar presença na mangueira do
quintal, tirando a paz de Sinhá! E mal começava a piar Si-
nhá Dúca apurava a audição:
- Será pio de coruja essa zazoeira? É?
- E não é que é mesmo!
Confirmada a má presença, Sinhá tinha lá um procedi-
mento para caso de pio de coruja agourenta: Levantava-se
fazia o sinal da cruz e desafiava a corujinha, declamando
a seguinte quadrinha:
Corujinha, corujinha
Tanto pia que não põe
Enfia tua desgracência
No fiofó de tua mãe!
Se fosse a tal corujinha, de ziquizira pouca...coisa
de somenos; levantava vôo pra bem longe, prá modo não le -
var versinho tão desaforado pelos cornos.
Se fosse a tal corujinha, de ziquizira muita...agou-
ro de firmação; aí que porca torcia o rabo! Logo Sinhá as-
severava:
- Essa veio a mando! Carece mais cuidado!
Entrava, botava as comadres pra dentro de casa, pas-
sava tramela nas portas, nas janelas e danava a berrar tu-
do quanto era cântigo da igreja, ela e as comadres. Pois
desse modo abafavam a coruja. E pio de coruja não escutado
é agouro sem valia! E assim ficavam a cantar até a coruja
cansar o peito, pois elas não cansavam não.
Quem morria de rir desse proceder de Sinhá Dúca, era
o seu afilhado: Rafael. O rapagão tinha por hábito, uma ou
duas vezes por semana, visitar a madrinha: levava-lhe uma
partida de mandioca, uma partida de carne-sêca ou uns fran-
guinhos muito bem criados...tudo lá de seu sítio.Por isto
tornou-se entre tantos, o afilhado predileto de Sinhá, que
dizia de boca cheia pra todo mundo que o apresentasse:
- Tá vendo esse bonitão aqui, meu afilhado! Eu que
deu o nome e é nome de gente importante lá no céu.. pois
me saiba o sinhô, que o arcanjo Rafael despacha diretamente
com Nosso Senhor!
E por mais de vezes, durante suas visitas, o afilha-
do Rafael encontrava a madrinha e as comadres enfurnadas,
trancadas à tramelas dentro de casa. Uma berração só dos
cântigos da igreja, no último volume. Tanto é que numa oca-
sião por conta de uma coruja tinhosa, o repertório da igre-
ja acabou, então foi que o estranho coral atacou uma valsi-
nha de Ataulfo Alves. Rafael não se contentava de tanto rir
- Êta nóis, que por conta da coruja, o coral da ma-
drinha ainda acaba na Rádio Nacional!!
Sucedeu então, que durante um descarregamento de gado
lá na estação, o afilhado de Sinhá conheceu um certo mula-
tinho muito do faloreiro, cheio de nove-horas, que atendia
pela graça de Zé do Bicho. Ganhára esse apelido, por sua
desenvoltura em imitar tudo que era bicho conhecido: zurro
de burro imitava com perfeição, latido de cão, igualzinho,
assobio de sábia...sem tirar nem pôr!
- Imitas corujinha, Seu Compadre?
- No que pedir...gru..gru...gru!
Rafael que era um pândego de primeira hora, já imagi-
nou a cara de Sinhá Dúca as voltas com a imitação de coruja
do mulatinho e Zé do Bicho que não ficava atrás em matéria
de troçar dos outros, combinaram pregar uma boa peça em Si-
nhá. Ah se não iam!
Na tardinha combinada, aportaram na varandinha de Si-
nhá Dúca, o afilhado mais o mulatinho: Zé do Bicho.
- Amigo desse meu afilhado, amigo meu é! Vamo entran-
do. Enfatizou a madrinha! Serviu bolo de milho, refresco de
tamarindo, conversaram e riram bastante das presepadas do
mulatinho. Lá pelas tantas, Rafael fez o sinal combinado e
Zé do Bicho com desculpa de usar o banheiro, escondeu-se
nos fundos da casa e mandou ver sua imitação de coruja, po-
de-se dizer que a interpretação do mulatinho foi capricha -
da, cagada e cuspida a uma coruja no pio! Sinhá Dúca na va-
randa ao escutar o falso pio, levantou-se:
- Credo em cruz! É pio de coruja, é?
- Mais será possível, não é que não é mesmo!
Sem mais tardar Sinhá Dúca colocava seus procedimen -
tos em andamento: sinal da cruz, quadrinha:
- Corujinha, corujinha...tanto pia ...que....
E nada, a corujinha do Zé do Bicho aí que piava com
mais esmêro:
- Gru...gru..gru...
Sinhá então queimou no golpe, fez todo mundo entrar
porta adentro, comadres, o afilhado, trancou tudo e toma-
lhe cantoria.
- Mais o que houve gente de Deus? Apareceu Zé do Bi-
cho com a cara mais deslavada do mundo. Rafael mal segura-
va o riso. Zé do Bicho aproveitou a cantoria e a aflição
de Sinhá e se escondeu na cozinha: e toma-lhe pio de coru-
ja. A madrinha assustou-se:
- Será o Benedito? Essa praga entrou em casa! Pegou
a vassoura e foi vasculhar a cozinha. Zé do Bicho disfar-
çou: - Também escutei! Veio daqui...veio daqui?
Mal Sinhá voltou para a sala, o mulatinho já escon -
deu-se atrás da porta do quarto e tome pio forte prá modo de abafar a cantoria das comadres e Sinhá:
- Valei-me Nossa Senhora Aparecida! A bicha tá no
vosso quarto Sinhazinha! Disse uma das comadres.
- Agora arrebento essa praga! Saiu a Sinhá de vassou-
ra em punho, lá chegando encontrou o mulatinho vistoriando
o quarto:
- Bicha danada! Aqui não tá, já revirei tudo!
Zé do Bicho mainerou, cantou junto com o coral, virou
prá cá...prá lá e foi pro corredor saltar a corujinha de
sua garganta e botou pra quebrar!
Nesse momento, sem mais nem menos, Sinhá Dúca suspen-
deu a cantoria, olhou prum lado...pro outro, virou-se e
foi ter com o mulatinho lá no corredor, que já voltava todo
disfarçado, quando Sinhá olhou-o fixamente, fez o sinal da
cruz e recitou a seguinte quadrinha:
Corujinha, corujinha
Que Seu Zé do Bicho me fingiu
Leva tua desgracência
Lá pra puta que o pariu!
E caiu de vassourada no mulatinho, merecidamente.