139 - A ÚLTIMA PESCARIA!
Das vezes pequenos detalhes nos chamam a atenção e estranhamente atiçam o nosso imaginar, são detalhes que quase sempre acontecem às vésperas da morte de algumas pessoas, fatos estes que nos levam a ponderar se elas tiveram a clarividência que seus dias de vida chegaram ao fim, pois o seu comportamento, o seu proceder, claramente nos leva a assim atinar.
Determinada pessoa doente em estado crítico, terminal, em coma, num repente acorda lúcido, conta estórias, pede para servirem um prato de macarronada ou outro qualquer de sua preferência, relembra de fatos ocorridos, lamenta e pede perdão pelos erros cometidos, pergunta por conhecidos e parentes já falecidos, distribui sorrisos e abraços, pra depois adormecer e nunca mais acordar...
Outro começa o dia e nos seus afazeres escancara uma alegria desmedida, se encanta com a natureza, brinca com todos, relembra de fatos marcantes e os descreve com emoções já coloridas de saudades, e vive aquele dia como se o último fosse, e por mais paradoxal que possa parecer aquele é realmente o seu último dia de vida!
Um grande amigo e companheiro de tantas pescarias, o Alberico, residente no município de Aramina no estado de São Paulo, homem de uma energia contagiante, contador de causos, digno de todos os elogios, bom pai, bom esposo, corretíssimo com os seus negócios, acompanhado de sua esposa a Dona Adamor foram pescar lá pras bandas do município de Buritizeiros no estado de Minas Gerais, rumaram para um pequeno vilarejo localizado nas barrancas do Rio São Francisco denominado Sambaibinha, onde possuem um rancho! Naquela caravana estavam presentes outros araminenses seus amigos e pescadores.
A pescaria estava se desenrolando de uma maneira animadora, muitos peixes estavam sendo fisgados, pouquíssimos dourados, mas mais piaparas e matrinxãs.
Naquele dia, uma sexta feira o meu amigo Alberico madrugou, ponteiro da turma a todos chamando, animação de jovem naquele corpo pra mais de setenta e quatro anos de existência, pra mais de cinquenta anos de casado, aquela vivacidade a todos encantava, madrugaram, o seu companheiro de barco mais tarde nos relatando disse que nunca o virá com tamanho empenho e dedicação, queria num só dia ver todo aquele velho estradão de águas que é o rio São Francisco, passeou por entre ilhas que ficam abaixo daquele trecho, subiram pelo tombo d’água da onça onde se pega os grandes dourados, parecia que tudo era novidade para os seus olhos, para a sua alma, reparava os mínimos detalhes, apontava a florada de alguma árvore lá no distante, atentava para o canto de um pássaro no acolá, reparava a beleza do voo das araras, no final do dia quis ver o ponto das garças, local escolhidos por estas aves para passarem a noite, centenas e centenas delas em revoadas vão se aglomerando em umas poucas árvores que esbranquiçadas das demais se destacam, um espetáculo digno de toda a admiração.
Neste dia insistiu em ficar na barranca do rio até o cair da noite, queria o ver o por do sol, quis ver os últimos raios de luz refletindo naquele irisado e mágico espelho d’água onde as sombras esticadas pelo entardecer vinham matar a sede e se refrescarem, e por entre as serras foi se alevantando num espetacular embelezamento uma lua cheia que esplendorosamente salpicava pelo chão entremeados de sombras e clarões, um encantado curiango com seu repetitivo canto saudava a solidão, e lá dos confins do pé da serra se ouvia o piar do inhambu jaó se despedindo no esconder...
No percurso de volta pro rancho o nosso amigo, o Alberico, dava estrondosas gargalhadas aos reviverem os acontecidos do dia, lembraram-se do dourado que depois de fisgado pulou tal qual um burro bravo, pulou tanto que se desvencilhou do anzol e dando outros saltos em águas turbulentas se transmudou, redesenharam o por do sol, revoaram as garças, por fim disse que nunca tinha reparado que quão belo e quão esplendoroso é o nascer da lua e que aquelas imagens pra sempre em seu coração ele as levaria!
No rancho se sentiu um tanto cansado, um tanto encalorado, sonolento, numa cadeira de descanso se acomodou, ternamente olhou para a sua amada, aquela que o acompanhou por mais de cinco décadas, que lhe de deu tantos filhos e filhas, relembrou de momentos felizes que juntos desfrutaram, das dificuldades vencidas, e sorrindo e como que estivesse brincando disse:
- Adamor! Eu estou morrendo!
E morreu...
Morreu tão longe de casa, mas se a fortuna me agraciasse com semelhante morte, eu morreria bem feliz, mais feliz ficaria se me enterrassem na barranca de um destes rios por nós conhecidos, amados e referenciados.
Indubitavelmente algumas pessoas ao que parece intuitivamente percebem que os seus dias de vida chegaram ao fim, talvez estes pressentimentos sejam ecos emanados das profundezas da alma ciosa do porvir, e a pessoa como se guiada pelo imponderável aproveita estes relampejos, retalhos últimos de vida para se despedir, para se desculpar e para agradecer a todos que o acompanharam nesta curtíssima jornada que chamamos de vida!