Antonieta

Tem os lábios finos que contrastam com os olhos grandes e pesados, tristes. Se chama Antonieta e nunca me dirigiu uma só palavra, nem um bom dia quando me encontrava no elevador. Morava no 702, apartamento perfeitamente acima do meu, o 602. E eu queria ser o porteiro que lhe arrancava bom dias ensaiados, o carteiro que deixava suas contas e cartas, seus pacotes de compra pela internet, o caixa do super-mercado, o cabelereiro que cuidava do seu cabelo castanho claro. Eu queria ser sua pedicure pra cuidar de pés tão pequenos toda semana no salão. Queria ser seu amigo de faculdade ou de estágio. O cara mais popular da escola dela pra que, pelo menos assim, ela soubesse da minha existência, nome e sobrenome, e fosse apaixonada por mim mesmo com reputação de garanhão. Eu ficaria feliz até mesmo em ser o tapete de boas vindas que ficava na porta da sua casa, o vaso de planta que ficava no corredor do seu andar que ela sempre regava, eu queria ser o pai dos filhos daquela garota de calça jeans e chinelo, com o cabelo sempre preso da maneira que era pego.

E tantas que já entraram em minha casa se perguntaram o porquê de eu as querer longe às 8 horas da manhã. Era pra vê-la. Antonieta com seus mil livros no braço que eu sempre quis ajudar, mas nunca tive coragem de propor tanto quanto sabia exatamente que ela não aceitaria minha ajuda. Ficava todos os dias parado na frente do elevador. Esperando que ele parasse no sétimo andar para pedí-lo no sexto e deparar com ela e seus livros.

E meu trabalho não tinha produtividade quando eu não a encontrava. E as piadas não tinham graça. E a comida não tinha gosto, a água não matava minha sede. Sede de Antonieta. Minhas manhãs eram dedicadas a ela e graças a ela eu sobrevivia o resto do dia, os domingos, dia em que ela não saía, eram um tormento.

Uma vez, num desses racionamentos de energia em que por quase um mês não pude ver Antonieta no elevador, quase me mudo para a escada de incêndio para esperá-la passar por mim. Um desses dias, quando já passavam das 10h, resolvi subir um pouco a escada e vi Antonieta sentada num degrau. Chorava. A impressão que tive era de que olhos tão pesados haviam se sobrecarregado e transbordavam tristeza em lágrimas de cristal. Antonieta me viu e passou por mim como se estivesse atrasada para o enforcamento de seu pai.

Resolvi me dar um tempo de Antonieta depois disso, antes que ela desconfiasse de meu vício por ela. Mas quando o racionamento acabou, não fui capaz de me conter por mais tempo e ia todos os dias às 8h da manhã pra ver o elevador parar o sétimo andar e pedí-lo no sexto para me deparar com Antonieta e seus livros. Nunca mais a encontrei.

Fiquei uma semana sem ir ao trabalho, nem sair para nada, nem atendendo a nenhum telefonema. Queria passar o resto da vida sem nada, já que não tinha mais minha Antonieta em todas as manhãs. Vivi um domingo eterno até que a comida acabou. Saí para comprar e passei algum tempo tentando me decidir o que doía menos: ir pela escada ou pelo elevador. Todos tão vívidos com minhas lembranças de Antonieta.

No térreo, o porteiro me chamou, mas eu disse que pegava minha correspondência na volta. Fui ao mercado e comprei tanta cerveja quanto pude carregar. Voltei com as mãos ocupadas e o porteiro colocou em cima das caixas de cerveja as minhas contas do mês. Cheguei em casa e botei tudo pra gelar, decidido a beber sozinho os próximos quatro dias e só depois voltar a tentar viver sem minha triste Antonieta no elevador de todas as manhãs.

Havia um envelope pequeno sem endereço nem remetente, apenas com o número 602 escrito, que não era carta nem conta que eu só percebi quando fui pegar a primeira cerveja. Por curiosidade abri e com espanto cada vez mais crescente, li linha por linha do bilhete que lá havia sem saber no que acreditar.

"Miguel, descobri seu nome numa correspondência sua que enviaram por engano para meu apartamento. E não sei exatamente se tudo foi um engano meu, mas tenho me pegado inventando coisas a fazer fora de casa todas as manhãs por ser a hora em que te vi pela primeira vez no elevador. Invento estudos e trabalhos só pra ver o elevador abrir no seu andar e ver você todas as manhãs e implorar mentalmente que você me fale um bom dia ou peça pra me ajudar com meus livros ou simplesmente me faça deixá-los cair no chão com um caloroso beijo que anseio desde quando tenho a primeira lembrança de ter visto você. Eu já devo estar bem longe quando você tiver lendo isso, mas prometo que volto, só não sei o dia certo. Infelizmente não será menos de um ano, o tempo estimado para meu curso de intercâmbio. Espero que me espere."

E assim terminou. Sem assinatura, sem um número ou um email, nem mesmo um endereço para enviar-lhe uma resposta. E já fazem onze meses desde que Antonieta deixou esse bilhete na minha caixa de correspondência e como ela costumava me dar vida todas as manhãs, a espera pro ela me motiva a viver cada um numa mistura de angústia e esperança. Ela já está pra voltar e eu vou começar a ir todos os dias pra frente do elevador, esperar que ele pare no sétimo andar para pedí-lo no sexto e dar de cara com a minha garota de chinelo e calça jeans e ajudá-la a segurar seus mil livros ou fazê-la deixar cair todos num beijo caloroso com gosto de finalmente e finalmente saciar minha sede de Antonieta.

A B Queiroz
Enviado por A B Queiroz em 02/09/2012
Código do texto: T3862032
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