O dia frenético
- Saudações companheiros de tribulação!!!
Foi assim que eu saldei todo mundo que estava à bordo do ônibus escolar que fazia a linha entre meu município, Urânea, e a cidade polo da região: Cidade dos Patos. A data era oito de março de dois mil e três. Eu estava apenas cumprindo mais um dos meus dias normais. Naquela época eu morava na zona rural do município e estudava na cidade vizinha, uma vida dura de lascar, mas nada que não fosse digna.
Quando retornei da escola, soube de uma notícia muito interessante para minha família. Um dos nossos parentes que há muito tempo mora no estado de São Paulo e que há mais de oito anos não dava notícias, naquele dia resolveu tentar contato conosco através de uma rádio. Por felicidade de todos essa rádio era ouvida todo dia pelos meus familiares. Era a rádio Espinharas, da Cidade Dos Patos, estado da Paraíba. Todos nós escutávamos em um radinho de pilha, porque no sitio onde morávamos ainda não haviam ativado a energia elétrica que há tempos já estava instalada. E a notícia foi me dada da seguinte maneira:
- Nêgo, José ligou de São Paulo para a rádio Espinharas e pediu contato conosco. Ele não sabe onde estamos morando disponibilizou um número para que nós possamos ligar para ele – dizia minha mãe, tremendo de frenesi, e com o visível semblante de quem estava ansiosa para ouvir a voz do ente distante.
Para situar os leitores devo descrever um pouco de minha família. Pois bem, nós somos uma prole grande. Meu pai, João Bila, teve duas famílias e a nossa era a segunda família que ele havia constituído. São 12 filhos gerados, seis homens e seis mulheres. O mais velho de todos era o José Payacan, que viajou para as terras Bandeirantes quando tinha 19 anos, em setembro de 1989. Como todos os jovens daquela época, que não tinham perspectivas de uma vida próspera aqui em nossa terrinha, José Payacan foi pra São Paulo à procura de trabalho para ganhar dinheiro.
Nas terras sulistas ele foi sofrendo e tentando se organizar como podia e nos primeiros seis anos de sua estada por lá sempre entrava em contato com nossos pais. Depois desse tempo, não se sabe o que aconteceu, mas ele não mais mandou notícias. Recursos financeiros para a família era coisa rara de ele mandar, e agora até notícias dele estava difícil. O tempo passou e nós, os irmãos, fomos esquecendo que ele existia, afinal de contas ele havia deixado muitos de nós quando éramos ainda muito pequenos. Os mais velhos haviam perdido a esperança de revê-lo. Chegamos até a cogitar que ele morreu e por isso não tinha dado mais notícias, afinal de contas São Paulo, para nós, é um lugar muito violento. Mas apesar disso nossa mãe não perdia suas esperanças de ainda vê-lo. Mãe é mãe, não é mesmo?
Deixemos o José Payacan embrulhado em suas lutas pelas terras Bandeirantes, caros leitores, pois esse nobre que vos escreve não tem o conhecimento do que se passou por lá durante esses tempos. Quero relatar mais sobre minha família, para que fiquem vocês mais informados sobre nossas alegrias e infortúnios.
A vida era dura, como a de muitos nordestinos pobres. Em uma família grande como a nossa, era necessário muito trabalho pra adquirir o sustento. Dos doze filhos, poucos estudaram, e frequentar a faculdade até então não tínhamos nenhum representante. Numa época em que a única fonte de renda era a aposentadoria de meu pai, é desnecessário dizer que a situação piorou quando ele morreu no ano de 1995, exatamente no ano em que o José Payacan deu sua ultima saudação para os pais e irmãos.
Todo mundo teve que ralar para ajudar na sobrevivência de todos. Eu e meus irmãos mais novos fomos os mais sofridos dessa era. Alguns dos mais velhos já haviam se casado e saíram de casa. Alguns ajudavam nossa mãe, mas devemos considerar que eles tinham suas famílias para cuidar. Essa vida dura, para não dramatizar a história, ganhou mais um baluarte viril quando um dos nossos irmãos tornou-se alcóolatra. Essa foi a maior barra que tivemos que enfrentar. Ele inclusive teve que ficar sozinho, isolado de todos, por muito tempo.
Era uma barra. Muito trabalho pesado e nada recompensador. Nenhuma renda aparecia para aventurarmos mudar de vida. Mas o tempo foi passando, aceitamos a luta e resistimos à situação. Os filhos mais novos continuaram estudando, alguns deles sem perspectivas, mas eu com todo gás. Com esperança de mudar de vida. Todo dia frequentava a escola debaixo dos maiores desafios. Morando na zona rural ou na cidade. Mas sempre resistindo. Foi assim que despreocupadamente, cumpri mais um dia de minha luta naquele dia oito de março. Confesso a todos que não me lembrava muito que tinha um irmão mais velho que morava em São Paulo, quando recebi aquela animadora notícia.
Pois então leitores, como já relatei, José Payacan entrou em contato com a rádio Espinharas e pediu contato conosco. Ele deduziu que nós não estávamos morando muito longe da Cidade dos Patos. Quando ele nos deixou morávamos em Igaracy, sertão da Paraíba, cidade natal de muitos de nós, os irmãos desta prole tão grande. Mas meu pai como era muito nômade, fez com que andássemos por muitos lugares, e a ultima cidade que ele viveu foi a Cidade dos Patos. Não sei como, mas o José Payacan ficou sabendo da morte dele e cogitou que não estaríamos morando muito longe dali, mesmo depois de oito anos que ele havia falecido. Vocês caros leitores, filhos de minha alma, devem estar percebendo que já são quatorze anos que o nosso irmão mais velho se ausentara. Durante seis anos ele deu notícias, depois mais oito anos sem dar sinal de vida. Por isso caros leitores, não só minha mãe, mas todos nós ficamos frenéticos com a situação. A rádio noticiou mais de uma vez e uma de minhas irmãs pegou o tal número de telefone.
O dia seguinte, sem sombra de dúvidas foi o dia mais frenético de nossa família. No aviso da rádio, o José pedia para ligar depois das 20 horas devido ao seu trabalho. Estávamos reunidos na casa de uma irmã. A família quase toda ali durante o dia todo na expectativa da ligação. Todo mundo andava de um lado para o outro imaginando a primeira conversa com José. E nossas cogitações: Como será que ele está? Será que tem família? Será que lembra de todo mundo? Por que não ligou para nós? Ficamos nessas preliminares durante todo o dia.
Chegou a hora. Às 20 horas do dia nove de março de dois mil e três, esse nobre que vos escreve pegou um cartão telefônico e em um orelhão ali próximo discou o número informado pela rádio. Então ouvi uma voz suave e cheia de sotaque paulistano.
- Alô! Quem fala? Era uma voz de mulher...
- Aqui quem fala é Jozias Umbelino, irmão de José do Poste (apelido antigo do meu irmão, o José Payacan).
- Jozias você fala de onde? Indagava minha interlocutora.
- Falo de Patos, na Paraíba. Eu queria falar com o José Umbelino. Ele ligou para uma rádio daqui de Patos e pediu contato conosco, deu esse número e agora estou ligando para saber dele – foi assim que respondi a moça que, pela minha intuição, era esposa dele.
- Ahh você é o irmão do José... É verdade, ele está querendo falar com vocês. Faz o seguinte Jozias: liga daqui à uma hora, pois ele deu uma saída e volta logo. Vou avisar pra ele que vocês ligaram. Encerrava a ligação.
Relatei à todos. Nessa hora o frenesi aumentou. No horário indicado, minha mãe pegou o número e ligou novamente. Daí vocês caros leitores, devem estar imaginando o que aconteceu. Foi uma alegria enorme. Contaram-se todas as novidades. Atualizou-se às duas situações.
Passou-se o primeiro momento de frenesi e marcamos contatos posteriores.
Essa história meus sóbrios leitores se passou no ano de 2003 (dois mil e três). Estou reescrevendo ela agora nove anos depois, mas até o momento meu caros, não sabemos o porque do José não ter dado notícias para nós. Minha mãe o achou muito mudado. O sotaque era o paulistano. E ele se mostra um perfeito sujeito enrolado. Afirma que vem à Paraíba em certa data e não cumpre a palavra. Às vezes conta vantagem de estar morando em São Paulo. Pobre diabo, não sabe ele que arrochado é quem consegue ser forte aqui nas terras áridas e arretadas do meu nordeste, da minha linda Paraíba!