O Caso da Claustrofobia

I

Sempre considerei que as testemunhas conduzidas sob vara ou debaixo de vara ao Juízo – aquelas que deixaram de comparecer por si mesmas a uma primeira convocação feita pelo meritíssimo e por isso se vêem levadas forçadamente sob o peso do mandado judicial – na maior parte das vezes recebem nas Secretarias das Varas um tratamento especial que eu incluiria sob o termo very important person (VIP), tratamento dado a pessoas importantes e que teve origem na Rússia dos Tzares. Lá existiam salões próprios para a recepção de pessoas celebres ou influentes e a expressão acabou se tornando bastante comum em todo o planeta a partir de meados da década de trinta.

Já a expressão “conduzir sob vara” surgiu da seguinte forma: Vara é o termo que atualmente representa a circunscrição ou a área judicial onde o juiz de primeiro grau exerce a sua autoridade. Surgiu na antiga Roma e designava originariamente a haste (o bastão ou a vara) conduzida pelos juízes como sinal de seu poder. Essas varas serviam ainda para distinguir os juízes letrados dos juízes leigos.

As varas brancas, por exemplo, pertenciam aos juízes letrados e as vermelhas aos juízes leigos. Quando alguém então se recusava a atender a uma convocação do juiz, era conduzido publicamente pelo oficial de justiça e ameaçado com a referida vara.

A partir daí surgiu a expressão “conduzido debaixo de vara” que ainda é usada atualmente no Direito para designar a pessoa que foi conduzida até a sede do Juízo pelo oficial de justiça.

II

Lembro-me de um caso acontecido na época em que estive lotado na 7ª. Vara do Trabalho de Belo Horizonte. Uma testemunha que deveria ser conduzida pelo oficial de justiça comparecera sozinha ao balcão da Secretaria.

Ela informara inicialmente que sofria de uma doença rara, a claustrofobia, ou seja, fobia, medo ou aversão por confinamento em lugares fechados como elevadores, túneis ou quaisquer outros tipos de salas ou recintos fechados,

Em situações desse tipo – e sem que o indivíduo esteja de fato sofrendo qualquer espécie de perigo real ou tenha controle sobre o seu próprio corpo - o organismo da pessoa desencadeia imediata reação de alarme, provocando ansiedade, sudorese, aumento dos batimentos cardíacos e medo intenso.

As sensações partem do psíquico para o físico. O ambiente então parece se comprimir, o teto se aproximar, as paredes se contraem e as pernas e mãos do doente tremem, o suor começa a escorrer por todo o seu corpo, a sua boca seca e o coração se assemelha a uma bomba prestes a explodir.

A testemunha me explicara então que na vez anterior em que fora convocada para prestar depoimento em audiência, não conseguira subir os degraus que separavam o térreo do edifício até o sétimo andar onde se situava a Vara do Trabalho. E dissera ainda ter sido esse o motivo pelo qual faltara à audiência sem sequer conseguir se justificar. Permanecera durante vários minutos imóvel diante da porta de entrada do edifício da Rua Goitacases, sem conseguir mover-se na direção do hall.

Desta vez, porém, depois de realizar um esforço sobre humano, com muita dificuldade viera subindo lentamente e um a um as dezenas de degraus que o separavam do térreo ao sétimo andar do edifício.

Antes de tudo isso, porém, ele me explicara que já prevendo todas as dificuldades que teria nessa empreitada, saíra de casa com duas horas de antecedência. Evitara claramente vir no carro do oficial de justiça, pois em seu próprio automóvel ele se sentiria menos desconfortado e inquieto. O oficial de justiça acompanhara-o discretamente a alguma distância.

Ao entrar no prédio da Justiça do Trabalho sentira novamente o mesmo aperto no peito e o suor frio experimentados na vez passada. E, novamente desta vez, não conseguindo reunir forças e coragem suficientes para entrar no pequeno cubículo do elevador, começara lentamente a subir os andares que o separavam do seu terrível destino.

III

Bem: num caso extremo daquele, o que tínhamos que fazer era tentar tornar menos dolorosa a estadia daquele indivíduo em nossa Secretaria. Logo, portanto, lhe oferecemos água, café e biscoitos que guardávamos em nossa cozinha, tudo isso tentando tornar as coisas melhores para ele. A tudo, entretanto, o homem recusou nervosamente.

Então deixei o serviço que estivera fazendo até aquele momento – cadastrando e intimando partes e procuradores em vários processos - e me assentei próximo do sujeito, buscando levar com ele uma conversa qualquer que o mantivesse tranqüilo e distraído do fato de estar “trancado” naquele recinto fechado no sétimo andar do nosso edifício.

Ele pedira apenas que eu permitisse uma das janelas que lhe estavam próximas permanecesse aberta. Segundo ele, o fato de ver o céu azul e as nuvens a transitarem livres e a área livre defronte à janela era o suficiente para fazer com que se sentisse menos inquieto e nervoso.

Por via das dúvidas, deixei a bendita janela aberta apenas pela metade e ainda fiz questão de colocar uma ou duas cadeiras entre o homem e a tal janela, o que impediria qualquer gesto ou ato impensado por parte daquela nossa testemunha ao mesmo tempo vip e claustrofóbica.

Como comentário final, cabe lembrar que as partes do processo em questão acabaram compondo um acordo naquela mesma audiência, o que tornou desnecessária a audição da testemunha. Ele agradeceu toda a atenção e colaboração que lhe fora dada no tempo em que esteve conosco e partiu. Desceu a pé as mesmas dezenas de degraus que agora o separavam do sétimo andar ao térreo do edifício e ao passeio público da rua Goitacases.

Chegando lá embaixo com certeza deve ter soltado um suspiro de satisfação e alívio. E se sentia semelhante a uma ilha. Exatamente como uma ilha cercada de água por todos os lados. Mas que no seu caso era cercada por chão e espaços abertos por todos os lados.