Instinto impune pune e alerta

Nesta tarde retomo meu programa de condicionamento físico que comecei há 4 meses. Em primeiro lugar por meus colegas de bairro terem se afastado do tradicional futsal por diversos motivos, eu preciso encontrar algo substituto, então decidi fazer umas corridas combinadas com outros exercícios complementares nas praças do bairro. Em segundo, estou me preparando para o teste de aptidão física do último concurso da Empresa de Correios e Telégrafos.

Ao longo desses 4 meses sinto mais energia, mais reflexo em meus movimentos, porém menos adrenalina no sangue. Esse é meu hormônio favorito. Agora, já estou acostumado com sua produção em doses homeopáticas.

No treino de hoje planejei sair por volta das 17hs. e realizar um circuito mais curto com mais velocidade, e menos repetições nas flexões e nos abdominais em um ângulo mais aberto. Ao concluir minha série de exercícios, a noite já se fazia presente, supus que já era hora de voltar mesmo querendo ver o pouso de um avião que se aproximava do aeroporto, e sem ter ouvido todas as músicas que eu havia selecionado no MP3 "player" para ouvir durante o treino. Ah, posso escutar no caminho.

Ao sair do perímetro da praça eu entro na mesma rua de costume, de calçadas baixas, bem arborizadas, e muito bem por sinal já que apesar de haver postes de iluminação a sombra das árvores escurecem um pouco as calçadas. Ainda assim gosto de passar por ela. Eu curtia o som do meu aparelho pela calçada, em um grau elevado de descuido pra não suspeitar da lâmpada de um poste que se apagou (suponho eu), e para me trazer a realidade apareceu um sujeito por trás de uma árvore com uma faca pequena em minha direção. Pensei em correr, mas minhas pernas recuperando-se do cansaço estavam aceitando meu destino de ser atentado pelo indivíduo. A abordagem foi "tranquila", eu não me lembro de sentir tensão diante da situação inédita, provavelmente não era a primeira vez que ele fazia aquilo. Não houve alvoroço de ambas as partes. Eu estava disposto a "colaborar" por sempre ter ouvido para não resistir nessas situações. O rapaz que manteve a faca quase que encostada ao meu ventre me pediu todos os objetos de valor que eu carregava, eu senti meu suor congelar no momento em que lembrei que a chave da minha casa estava comigo. Meu pensamento estava paralisado, mas minha coordenação motora não, então eu retirei os fones do MP3 "player" dos meus ouvidos, levantei um pouco a camiseta desprendendo o aparelho do meu corpo. Estendi a mão e passava-lhe meu tocador de músicas. Parecia que se passaram 3 anos (a idade da minha posse do aparelho) apenas enquanto minha mão viajava para a do sujeito rumo à perda de uma parte da minha memória.

No instante em que meu aparelho repousava na mão do sujeito e eu recolhia a minha vazia, um avião passa muito próximo da árvore cuja estávamos debaixo sacudindo seus galhos fazendo um barulho que eu escutei em uma leve frequência, como se todos meus sentidos estivessem focados somente no rapaz na minha frente, lembro-me que eu enxergava uma espécie de túnel cujas paredes eram lava e no final dele estava o sujeito. Eu deduzo que o barulho do avião foi muito mais alto do que eu ouvi, pois o indivíduo movimentou-se recuando um pouco e afastando a faca para o lado demonstrando ter se assustado com o súbito evento. Foi nesse instante em que meu corpo foi tomado por um ímpeto pelo qual eu avancei em direção a mão que segurava a faca, levantei-as... o túnel que eu via sumiu. Tentei mais uma vez agora mas não consigo fornecer agora a lembrança precisa de como eu o fiz. Tornando à consciência, um pouco tonto, procurei me situar olhando ao meu redor, depois para eu mesmo, vi manchas sangue na minha camiseta, em seguida vejo sangue também em minhas mãos, e ao olhar para o chão na minha frente vejo o rapaz deitado sobre sangue, que se alastrava pelo chão, com uma das mãos perto do seu pescoço na altura da clavícula e a outra estendida virada para baixo, no chão. Esta cena me deixou perplexo ao passo que eu ouvia dentro da minha cabeça vozes dizendo frases curtas: "Toque a campainha"; "peça pra chamarem a polícia"; "assuma a responsabilidade!". Visto que nada mais vinha à mente, eu os fiz. Eu não me lembro do que eu conversei com o morador, mas o seu comportamento assustado não posso esquecer, ele chamou a polícia e depois, sem sair de trás do portão da casa, me perguntava como eu havia feito aquilo. Ele estava fazendo o trabalho da polícia até eles chegarem eu ser levado na viatura pelos policiais. Eu devo ter dito somente o que a voz me ordenou. Entrei atrás no camburão. Durante o traslado da cena do evento até a delegacia eu dialogava com a voz desconhecida em minha mente. "Como eu pude fazer uma coisa dessa?!", eu lamentando; a voz respondeu: "Você apenas revelou ser uma pessoa que naturalmente não suporta a perda de algo tão estimado. Sua realidade fez um trabalho excepcional em reprimir seus anseios mais autênticos, mas chega um momento que todo aquele arcabouço cultural torna-se conto de fadas para você. Esteja contente, o que você fez foi apenas reflexo de sua indignação por perder algo sem lutar". Eu digo: "Não! eu visava desarmá-lo, pedir ajuda no momento que o rapaz foi distraído. E quem está falando comigo? Agora além de homicida, louco!". "Garoto... eu sou parte você, que estou em você pela transmissão genética dos seus ancestrais, estou localizado no seu subconsciente, sou o instinto que a humanidade tenta extinguir, mas em todas as partes do mundo acredita-se que eu sou uma espécie de espírito mau ou demônio quando levo as pessoas a fazerem coisas desagradáveis, ou intuição quando elas fazem algo inesperado, porém positivo para a coletividade. Eu estou em todos os animais, nas feras e nas presas, mas foi no ser humano que eu encontrei as mais diversas possibilidades de me manifestar. E você não está louco coisa alguma, e nem sentirá remorso ou prazer pelo que fez. Seres humanos são animais, é possível educarem-me instinto, mas suprimir-me só acumula a energia que precisa ser liberada, e basta um leve estímulo para que o indivíduo ultrapasse limites morais, físicos e mentais. Infelizmente a neurociência ainda não será capaz de me mostrar para as pessoas de sua geração como eu realmente sou e atuo em humanos". Disse a voz estranha. Assustado eu sussurro: "Uaau! que delírio é esse!". A voz me pede: "Já estou voltando à minha letargia, você precisa ser racional, você não é tão ignorante pra não conseguir se livrar dessa. E me conserve em sua mente, não faça consumo de drogas quaisquer que seja, já que sua educação tem muito mais amor que ódio eu posso te levar a fazer coisas sobre-humanas para preservar o seu bem-estar e o dos que você ama".

Quando chegamos à delegacia, um dos policiais me acompanhara até a sala onde eu prestei meu depoimento. Enquanto isso eu meditava: "Ser racional, ser racional... ser ra-... saquei! Vou me amparar nos artigos que conheço." Com um semblante aparentemente calmo, eu fui submetido ao interrogatório. Onde e com quem eu moro, o que faço, de onde sou, etc. Dentro de mim O delegado estranhou quando eu não soube responder como eu tinha feito aquilo. Depois desse procedimento enfadonho, pedi licença para eu fazer uso princípio do contraditório e da ampla defesa, atenuar minha pena pela minha confissão espontânea, e sendo eu réu primário e por eu alegar que agi em legítima defesa. E o resultado foi que eu vou responder em liberdade. Então apelei: "Seu delegado, o cara era um bandido, queria me assaltar, a vizinhança lá não tinha coragem de passar um tempinho na calçada deles por medo daquele infeliz, a única vida que eu pus em risco foi a minha, é um a menos pra nós nos preocuparmos, facilite a vida desse cidadão que só busca dignidade. Diante das circunstâncias esse processo será arquivado ou serei absolvido legitimamente". Ele suspirou, levantou-se, retirou meu tocador de música do seu bolso, sentou-se e me pediu para eu mostrar-lhe as músicas que continha nele. Eu meio desconcertado pus o homem para ouvir Coldplay, Avenged Sevenfold, Foo Fighters, The Strokes, Pink Floyd, Led Zeppelin, Jumenta Parida, Secos e Molhados, Os Mutantes, Djavan, Lucas Santana. E no final ele disse que ia ficar com meu tocador, e eu voltasse lá na quarta-feira, que era o dia que ele estaria de plantão e me devolveria meu aparelho. Cheguei em casa há pouco. Agradeci aos policiais que compreensivamente me levaram pra casa em seu percurso da ronda. "Mainha" não estava em casa, felizmente. Lavei a camiseta e o calção. Mesmo me livrando das evidências, certamente "mainha" tomará conhecimento cedo ou tarde dessa história, sabem como é notícia ruim. Acho que vou mesmo é pedir que ela leia este conto ainda hoje, pois isso me afastaria ainda mais da tranquilidade. Eu ainda não estou aceitando que isso realmente aconteceu. No momento eu apenas PENSO que aconteceu, sem ter a menor certeza. Tento me furtar da lembrança dos instantes daquele evento para que eu possa retomar o curso da minha vida. Afinal tenho uma vaga de emprego a conquistar nas próximas semanas. Eu acredito que eu vou superar o desconforto que essa estória me causa, ainda que demore. No entanto o diálogo com aquela voz me deixou intrigado, e até preocupado (inclusive com uma dorzinha de cabeça que sinto agora), visto que eu não tenho o menor controle das condições em que ela pode se manifestar. Junto a essa preocupação, me sinto um pouco contente pela consideração que recebi das autoridades.

Racionalmente, eu tenho pleno controle dos meus atos, eles são sóbrios e prudentes. Mas aquela voz me pôs em alerta, existem mesmo ações/reações que escapam do nosso domínio, e concomitantemente da memória?! Quanto a isso que acabo de contar, acho melhor que eu não lembre como eu executei aquele rapaz. Que eu também não saiba como evocar sensações alucinantes em mim.

J K Alves
Enviado por J K Alves em 22/08/2011
Código do texto: T3176295
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