A CAVEIRA FALANTE
Esta causo aconteceu a muitos tempos atrás, era meados do século passado, época em que a tecnologia ainda não havia tomado conta do campo numa colônia de fazenda de cana de açúcar e cujo produto final era a cachaça. Naquele tempo todos os trabalhadores moravam na colônia da fazenda, formando uma pequena comunidade que pela convivência aliada a tempo de permanecia, tornavam quase que parentes e se houvesse um compadrio então, ai nem se fala, as famílias se tornavam intimas mesmo, coisas que praticamente já não existem aqui em nossa região, pois com achegada da tecnologia no campo, até mesmo as colônias das grandes fazendas deixaram de existir. Verdade é que nesta fazenda a colônia ficava nas proximidades do alambique, no período da safra, o trabalho começava por voltas das cinco horas da manhã e só terminava por volta das dezoito horas, valendo lembrar que horas extra nem se ouvia falar nesta época e mesmo assim os trabalhadores davam do melhor no serviço. No período da entre safra, aqueles que trabalhavam na industria, agora iam também para o campo, capinar cana, plantar, enfim cuidar da lavoura até a próxima safra. Nesse período porem o trabalho era mais leve, começavam por volta das sete horas da manhã, tinham pausa para o almoço, café da tarde e por volta das 17 hora retornavam para casa para o merecido descanso, sem contar que nos finais de semana, o trabalho ia até por volta das onze horas do sábado, o resto do dia era folga e no domingo sempre tinha uma pelada no campo da colônia onde reunia gente de todo o bairro e adjacências.
Ze Preto era um dos colonos mais antigos da fazenda embora não aparentasse muita idade, pois como diziam por aqui “o preto quando pinta, tem três vezes trinta”, portanto já havia passado dos cinqüenta anos com certeza, mas era um trabalhador assíduo, não chegava atrasado no serviço e nem tinha pressa para ir embora, era sossegado como ele só, mas numa bela quarta feira, quando Zé chegou manquitolando na roça o pessoal já estava no meio do eito e foi uma vaia danada para o homem que realmente trazia a feição abatida pela noite mal dormida, mas pegou firme no batente.
No momento do almoço, preocupado com o Ze Preto, Seu Tonico o administrador da fazenda que na qualidade de encarregado da turma e compadre do homem foi prosear e saber se havia acontecido alguma coisa grave com ele ou com alguém da família e o Ze desabafou.
__ Cumpadi Nho Tunico, vosmice já morreu?
O encarregado rindo responde que não, pois isso só acontece uma vez na vida e ele estava ali, vivinho da silva.
Quando os demais trabalhadores ouviram o dialogo, já trataram de se reunir ao derredor do negro que prosseguiu com o causo:
__ Puis zóia cumpadi, puis num é qui esta noite eu murri. Murri e murri di verdade e contano assim, ninguem aquerdita. Onti a muié feiz um sopa de mandioca cumas custela di boi nu meio e o trem fico bão dimais da conta, acho que izagerei um poco, cumi duas pratada e cumo já tava meio tarde, puis vosmice sabe que gosto de mi arrecoiê c’oas galinha i tava morreno de sono, fui drumi côa barriga cheia. Ahhh! Cumpadi nho Tunico, tive uma pisadera das braba, paréci qui minh’arma saiu do meu corpo, oiei pra trais o vi eu mortinho mortinho na cama e sai vagando pelo mundo, passei pelo puvoado, mais por causa sê di noite, tava tudo fechado, fui intão pru cimitério, o que faze não mi pirgunte porque nun sei, mais fui, chegano lá comecei vagar pelos túmulos, tinha uma cova aberta i na berada dela tava uma cavera, num é qui a danada da cavera zoio pramim, deu uma risada jacoaiando toda a dentaria, fazeno uma barueira danada i mi disse
Oi Zé, eu já fui o que tu és
Mas tu serás o que hoje sou
E Nóis qui aqui estamus
Ansiosamente por vóis isperamus
__ Ahhh! Cumpadi Nho Tunico, mi deu uns arripio na cacunda é cumo sempre fui du sangue quente, num sobressarto meti um ponta pé na cara da danada da cavera falante e num é qui acertei im cheio a parede do quarto, acordei aos berro e com o dedão dus pé sem a zunhas e o pio foi qui tudo mundo acordo assustad i eu num guentava mais de dor e adepois, quem diz di drumi, perdi o bendito do sono e fui passar por uma modorninha nu clariá do dia e pra dize a verdade cumpadi, to qui num agüento o trampo hoje nãun
Encerrou o causo e sem mais delongas, botou a enxada nos ombros, saiu manquitolando da mesma forma que chegou, passou no pé de ipê onde havia deixado a matula de comida e sumiu no estradão rumo de casa, naqueles tempos não se falava em atestado, simplesmente perdia o dia de trabalho mas quem estava fazendo conta disso?