AS REIUNAS DO CABO VIDAL

O zelo que o cabo Vidal dedicava às reiunas (botinas lá dele) era uma coisa inacreditável. Fetiche!... Um verdadeiro encantamento que o homem tinha pelas suas polainas, duas peças sempre luzentes como um espelho muito límpido. Por elas, sem eu aqui carregar nas tintas, até um deficiente visual enxergaria a própria cara.

É!... Aquele par de coturnos, sem dúvida, seria o seu único talismã. Impressionante e hilariante como o abnegado militar da então Guarda Civil, por um me dê cá aquele chapéu, dava insistentes olhadelas para os próprios pés. E isto acontecia onde quer que o tipo fosse lá encostar a sua carcaça.

Será que já pôde existir alguém, alguma vez na vida, por mais dedicado que haja sido a um objeto seu de valor, ou de estimação, que empregasse ao menos um cêntimo do carinho que aquele cabo de milícias tinha pelas botas que calçava, quando saía fardado? E, como só o víamos fardado, então os ditos apetrechos eram dos pés dele coisas inseparáveis.

Da esquina da Avenida 15 de Novembro, na asa sul da Base Aérea, lá onde morei, via-se quando o cabo Vidal vinha muito fagueiro, a romper um comprido areal, das bandas do bairro Beira-Sol. Ao que diziam as línguas amigas do Cocorote, ele morava ainda mais para além, lá nos confins da Serrinha.

Assim, tanto pior para o ilustre cabo da Guarda: exercitava caminhada longa e sorvia muita poeira fina na estrada de barro e areia. Ademais, tudo isto, também, prática ruim para a má sorte do seu lindo e invejável par de botas.

Mas onde, geograficamente, amoitava-se o cabo Vidal? Nada disto, aqui e agora, faz a menor falta nem excesso ao que nos importa. Importa é que o brioso defensor da Guarda Civil, já devidamente recém-promovido, ao acabar de vencer o areal que dava lá para os lados dele, tão-logo punha o pé na pista da Avenida 15, ali estacava – feito um curador do Museu Nacional – e, do bolso das nádegas, sacava de um lenço.

Pronto... Ali era quando começava o ritual do polimento das reiunas da nossa diligente autoridade. Aí o cabo Vidal punha um dos pés no estribo da calçada do casarão de Seu Chico de Tal (então prefeito em uma cidadezinha do interior) e, uma a uma, por reiteradas vezes, mandava aquele maior banho de lenço nas retintas e caprichadíssimas botas.

O detalhe é que ele não se contentava com uma única demão de esfrega. Alternava o lenço, já pelo avesso, ora em um, ora em outro coturno, até que fosse às partes mais íntimas do par de botas. E, ao fazer a religiosa função, não gastava menos que de quatro a cinco minutos. Assim era a operação limpeza das luzidias reiunas: demorada e caprichada.

Dando volta e meia, aqui, nas beiradas dos tempos, à moda e guisa de ‘flashback’, poucos anos atrás, ainda sem o dito gajo portar a valiosa patente de cabo, foi quando conheci o então guarda Seu Vidal. Ou era soldado, e eu sei lá!

Tipo raquítico e baixote, esse um; em verdade, um tico de sujeito. E sempre com um porrete de borracha, à cinta, mas jamais com pau de fogo. E, claro, também com as mesmas botas, lustrosas e polidas, que só o espelho da Branca de Neve.

Lá no Monte Castelo, o já anoso e competente guarda – em razão dos seus ossos do ofício – montara atalaia na porta do educandário do meu ex-mestre e queridíssimo professor Esmeraldino, este um sendo um cego da visão material, todavia com uma imensa luminosidade na alma e na inteligência. Homem clarividente, tocador de todas as letras alfabéticas e musicais, além de ter-se tornado maestro dos sete instrumentos.

De volta àquela Avenida 15, do Cocorote, sobretudo recaindo de ponta-cabeça nas botas do cabo Vidal, eu não irei aqui botar a mínima desconfiança de que o respectivo fosse um leigo de carteirinha no quesito ’higiene’. Vou lá o quê!...

Só de pulga na orelha, contudo, fico a matutar que ele marcaria tremenda bobeira, se, por acaso, por via de algum erro de percurso, ao sentir vontade de cheirar tabaco, um dia o insigne militar levasse aquele lenço todo ensaboado do pó do areal à tábua das ventas.

Fort., 20/04/2011.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 20/04/2011
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