O Caso da Penhora na Faculdade

I

Vou iniciar esse caso comentando a priori que não sei dizer exatamente se sou uma oficiala de justiça escritora ou uma escritora oficiala de justiça! O fato é que até hoje não consegui descobrir o que provavelmente me surgiu primeiro no caráter e na vida: sei que gosto de escrever e costumo caprichar bastante nas certidões que junto aos mandados que me são distribuídos e confiados pelo Diretoria de Mandados Judiciais.

É por esse motivo que às vezes me pego imaginando o quanto haverá em mim de escritora e de oficiala e qual destas duas partes teria assumido uma maior preponderância na minha personalidade e no meu jeito de ser, estabelecendo assim uma espécie de jogo semelhante ao do “médico e o monstro”.

Estas são algumas das questões que ainda não pude responder. Mas acredito também que não faria nenhuma diferença se eu chegasse a obter a esse respeito uma resposta positiva ou negativa. A verdade é que a vida segue em frente e de uma forma bastante livre e independente das nossas conclusões ou soluções racionais.

Devo lembrá-los que na maior parte das vezes o que realmente importa não é a maneira como nos acostumamos a reagir diante dos variados problemas que nos surgem no decorrer da vida. Tampouco haveriam de ser as respostas que normalmente apresentamos frente às nossas próprias dúvidas e incertezas. O que importa de fato – imagino – são as perguntas e as questões que nos propomos e que nos hão de preencher a existência e a mente durante toda a nossa caminhada. São elas afinal que nos impulsionam sempre!

Finalmente – devo concordar - também não acredito que haja de fato grande diferença entre ser uma coisa ou ser outra, mas que o mais provável nisso tudo é que as duas formas já se tenham há muito misturado e se fixado de vez em mim, deixando de ser coisas separadas ou isoladas de por si.

No entanto – e colocando de lado nesse momento todas essas importantes questões - vamos à presente história. Afinal, foi este o motivo que me trouxe de fato até aqui.

II

Mas o fato – meus colegas e amigos - é que recentemente me vi numa situação no mínimo complicada e constrangedora. Há alguns meses atrás fui designada pelo juiz de uma das Varas do Trabalho de Belo Horizonte para proceder à penhora e à avaliação de bens numa das mais conceituadas instituições de ensino superior da Capital, nada menos do que uma importante faculdade de medicina.

Para encurtar o assunto, vou me dirigir diretamente até o ponto que nos interessa e que fatalmente acabará atraindo a atenção do leitor. Ao chegar à referida instituição, os seus prepostos - que estranhamente tinham os mesmos nomes de dois dos evangelistas bíblicos, Marcos e Mateus - se apresentaram e me mostraram em três longas folhas de papel uma extensa lista de penhoras já realizadas sobre a quase totalidade dos bens daquela faculdade.

Conforme me informaram aqueles bons homens, tudo o que havia ali de propriedade e de uso diário da reclamada, de seus professores e alunos, se encontrava já penhorado e avaliado em múltiplos processos: microscópios, lousas, tesouras cirúrgicas, computadores, mesas de estudo e suas respectivas cadeiras, aparelhos de pressão, termômetros, monitores de sinais vitais, bisturis, estetoscópios, eletrocardiógrafos e toda a sorte de aparelhos relativos à ciência da medicina e aos demais cursos existentes naquela instituição.

Naquele momento, entretanto, um dos evangelistas se dirigiu direta e especialmente a minha pessoa. Começou falando de uma maneira bastante indecisa e duvidosa, num tom de voz que denotava talvez mistério e segredo:

- A não ser que a senhora oficiala queira...

Nesse ponto o tal evangelista se calou por um instante e dirigiu os seus olhos até o seu companheiro. Deixara escapar um jeito estranho e no mínimo interessante de olhar, muito suspeito para um detetive quase profissional como eu sou. Aliás, eu diria suspeitíssimo! Em seguida o outro sujeito esboçou um ligeiro sorriso e se conteve também em silêncio.

- A não ser que - continuou o primeiro evangelista, o tal Mateus – a não ser que a senhora oficiala de justiça se disponha a penhorar aquele material recentemente chegado do Rio de Janeiro. Foram as últimas aquisições da nossa faculdade e nenhum deles se encontra gravado de penhora...

- É, confirmou o evangelista Marcos. São os únicos bens da instituição que ainda se apresentam livres e desembaraçados de qualquer tipo de penhora. Na verdade ainda há pouco é que foram retirados de suas embalagens originais e dispostos nos seus respectivos lugares...

Bom – calculei rapidamente – nada como um bem livre de arresto e em perfeito estado de uso e conservação. E ainda mais em sendo um bem recentemente adquirido pela faculdade. Entretanto, fiquei meio cismada com aquilo tudo, em especial com o jeito misterioso daqueles homens. Então solicitei que eles me conduzissem imediatamente ao local onde se achavam guardados os bens para que eu pudesse ver do que se tratava e fielmente descrevê-los no auto de penhora. No entanto, meu simpático e alegre leitor - olhe que ainda tive tempo de pensar nisso com extrema satisfação - se aqueles bens ainda não haviam sofrido o gravame de nenhuma penhora, teriam efetivada hoje sobre eles a primeira delas. E por essa mesmíssima oficiala que vos narra a presente história!

Ainda mais – conclui em seguida – ainda mais por serem bens totalmente novos e conservados. Tratar-se-ia com certeza de alguma aparelhagem médica ou da área da saúde, possivelmente uma moderna máquina de ultrassom ou algo do gênero, equipamentos bem fáceis de serem vendidos em praça ou leilão.

Os homens então me conduziram até uma sala retangular e um tanto escura, o que a princípio não me permitia ver muito do que se achava a minha frente ou no seu interior. Ao chegarmos lá, a primeira sensação que experimentei foi um tanto nauseabunda: um cheiro forte e estranho se espalhava pelo ar e parecia entrar pelas minhas narinas e tomar conta de todo o meu corpo. Não conseguia captar a que tipo de produto aquele cheiro se referia.

Daí a pouco, entretanto, um dos tais prepostos acendeu as lâmpadas da sala e eu pude ver dez longos tanques construídos com um material semelhante àquele que é utilizado na fabricação das caixas d’água e das telhas de amianto. Assemelhavam-se a certos tipos de banheiras que ainda hoje podemos encontrar em apartamentos de construção muito antiga e se achavam tampados ou encobertos com grossos plásticos de cor escura.

Um dos homens – aquele que havia se identificado com o nome de Mateus – pediu que eu me aproximasse e me apoiasse nas bordas do tanque que mais se achava próximo. Dessa maneira – segundo ele – eu poderia enxergar melhor o que havia em seu interior. Começou então a enrolar lateralmente parte daquele plástico negro que lhe servia de tampo. Por outro lado, na medida em que eu ia me aproximando daquela grande banheira de cor cinza, sentia ainda mais forte aquele odor repugnante.

Então - num determinado momento da minha aproximação – compreendi finalmente que aquele era o cheiro de formol e comecei a me sentir um pouco tonta e assustada. Na verdade sempre tivera muito medo de defuntos e sabia que uma das formas de utilização daquele líquido era na preservação e na conservação de corpos ou partes de corpos de pessoas mortas.

E qual não foi de fato a minha surpresa, quando, ao me aproximar um pouco mais daquele primeiro tanque, vi estendido horizontalmente em seu interior e na posição de decúbito, um cadáver meio esverdeado e totalmente exposto. Só consegui perceber que se tratava do corpo de uma mulher devido a certa quantidade de cabelos encaracolados que ainda jaziam sobre a cabeça daquele ser tenebroso.

De imediato, porém, dei um salto para trás. E ainda hoje - quando me recordo daquela cena dantesca - sinto intensos arrepios por todo o corpo e percebo que estou prestes a desmaiar. Se fechar os olhos por um segundo, então, me sinto como se estivesse caindo de um local muito íngreme e alto.

Dei mais alguns passos para trás e quando considerei que me encontrava a uma distância suficientemente segura daquelas coisas, me dirigi muito nervosa ao preposto Mateus e lhe perguntei inamistosamente que tipo de brincadeira poderia ser aquela. A isso o evangelista logo respondeu:

- Não é brincadeira não, minha senhora! Essa mercadoria nos chegou do Rio de Janeiro. São dez corpos fresquinhos, completos e em perfeito estado de conservação. Para ser mais exato são seis homens e quatro mulheres que deverão ser bastante utilizados e dissecados nos próximos anos pelos nossos futuros médicos em suas aulas de anatomia humana. E fique a senhora sabendo que esses corpos são da melhor procedência e qualidade! Só para se ter uma idéia – continuou o homem – cada um desses cadáveres custou em torno de 1.500 reais. E cada um deles possui, inclusive, a sua própria nota fiscal, como bem poderá averiguar se achar necessário.

Dizendo isso, o homem se encaminhou até uma pequenina mesa de escritório que se achava num dos cantos da sala e retirou do interior de uma de suas gavetas as notas fiscais das referidas compras, as mesmas notas que haviam sido utilizadas no transporte terrestre daquela carga assombrosa. Nesse momento pude observar de fato que constava em cada uma daquelas folhas de papel timbrado a aquisição legal de toda a horrenda defuntada.

Comecei imediatamente a recitar a Ave Maria, o Credo e Pai nosso e me despachei dali sem nem olhar para trás. A visão daquele primeiro e terrível cadáver – e que Deus tenha piedade daquela alma abandonada naquele horrendo tanque de formol! – o cheiro daquele produto e uma estranha sensação de que a morte ronde e nos espreita por detrás de cada esquina e nos muitos caminhos e descaminhos dessa vida não me fez pensar noutra coisa naquele momento senão em fugir dali o mais rapidamente possível!

III

Conclusão: acabei penhorando mesmo foram duas longas fileiras de poltronas e cadeiras fabricadas num tecido acolchoado de cor vermelha e excelente qualidade. Elas se achavam num dos extensos auditórios localizados nos andares superiores daquela faculdade. Aquela sim! – pensei com alegria e satisfação – aquela era o tipo de penhora segura, boa e natural que uma oficiala de justiça poderia e deveria sempre realizar: móveis e objetos nos quais as pessoas vivas se assentam e não aonde os mortos são definitivamente postos a dormir!

Para o meu mais puro contentamento, devo confessar que nunca mais voltei a pisar os pés naquele estabelecimento de ensino. Graças a Deus, aliás! Mas sou obrigada a comentar também que ainda hoje costumo tremer quando entro numa sala um pouco mais escura do que o habitual ou que contenha algumas características semelhantes àquela onde se encontravam os famigerados cadáveres.

Às vezes também - feito uma loba percebendo no ar os muitos odores presentes na natureza - ergo as narinas e o rosto no rumo dos céus e da lua e pressinto no vento noturno aquele mesmo cheiro forte que senti ao adentrar naquela verdadeira catacumba universitária. Nessas horas costuma acontecer aquilo que eu afirmei anteriormente: se ousar fechar os olhos por mais de um segundo começo a sentir tudo girando e rodopiando a minha volta e o que vejo surgir na escuridão são dez grandes corpos esverdeados, todos eles comodamente alojados em seus temíveis tanques de formol.

De algum tempo para cá – entretanto - passei a me sentir um tanto melhor em relação a esse tipo de problema ou situação. O fato é que nos últimos meses comecei a namorar um lindo oficial de justiça e voltei a escrever, coisas às quais a muito tempo eu não me dedicava.

Essas duas atividades, escrever e namorar - e é bom que eu esclareça que não necessariamente nessa mesma ordem - sempre me ajudaram bastante a encontrar paz de espírito e a restabelecer parte do meu equilíbrio físico e psíquico.

Devo esclarecer e concluir que de fato não existe nada de melhor para levantar o ego de uma mulher do que experimentar os sentimentos do amor, da amizade e da poesia, seja essa última na sua forma divina ou na maneira profana.

Cada uma dessas atividades – e agora é claro que nas suas horas certas! – é bem capaz de nos transportar e nos conduzir por ares e horizontes nunca antes navegados e de abrir portas e caminhos de sentidos vários e outros às nossas próprias vidas.

É com esse pensamento alegre e jovial que finalmente me despeço de vocês.

Então – meus prezados amigos - até qualquer outra hora.

E hasta la vista, baby!