A MENINA DO CIRO MAMBEMBE

Era assim o circo mambembe que corria os pequenos povoados dos sertões do meu tempo de menino e ainda de moço, lugares onde não havia espaço para o grande teatro. Mambembe era realmente o meu circo na terrinha natal.

Mastro constituído de dois pedaços da madeira solidamente parafusados, cordame descendo em círculo, fincado ao solo por espetos em forquilhas firmemente batidas a martelo. A empanada caindo sobre o cordame até unir-se ao solo, de modo que só formiga poderia penetrar. Velhas lonas remendadas, cumpridos bancos de madeira do tipo arma/desarma, humildes artistas, que nem por serem humildes deixavam de ser grandes, ágeis e atuantes. Sem maiores oportunidade amiudavam. (Eu já escrevi isso ou li em algum lugar? Conheço o circo mambembe. De onde? Deixo a dúvida para avaliar depois). Não havia de animais para gáudio e gozo da criançada, senão um velho macaco, lento e preguiçoso, de andar bamboleante. A gente ouvia falar nas feras, no camelo, na girafa... Quem disse que para nós chegava isso? Girafa... A girafa em minha lembrança é aquela do mestre escola da roça, no livrinho de primeiras letras, que a gente via a figura e soletrava: g i gi - r a ra – f a – fá, girafa! (Leiam-se as letras uma a uma a seguir a sílaba – g i - gi; assim por diante).

A oportunidade do bom trabalho, do ganhar campos profissionais largos e vantajosos para o bolso e para o brilho na arte em todos os seus gêneros, é um fenômeno que depende de fenômenos outros. Não dá para analisar rapidamente. Pende de pendências que dependem de outras pendências. Quem ofereça a mão, por exemplo. Mas, também desinhibição pessoal, um pouco de lábia e não raro de leves mentiras – exibicionismo. É possível que também de sorte. Por exemplo, um cara que caia no gosto do Faustão e leve jeito para a coisa, pode ser um bem sucedido. Deixar esse papo e entrar diretamente na história, um caso comum, por sinal.

A menina de que falo tinha função primária de bilheteria. Vendia os bilhetes, recebia o pagamento, passava o troco. Fechada a bilheteria, a seguir a porta do circo ela entrava para a camarinha a vestir-se para a nobre função de trapezista. E era a sua hora de brilho. Sebo nas mãos, para fazê-las mais ágeis, um pouco de corante no rosto, pulava de um trapézio para o outro, deste para mais outro, voltava-se, rodava o corpo no ar, ia para o trapézio debaixo, exercitando piruetas quase inimagináveis. E eu disse menina, por quê? Uma garota não seria capaz de tudo aquilo. Miúda, franzina, corpinho de quase nada me ocorreu dize-la menina. Era moça feita, consolidada, diga-se. E bonita. Só depois a conheci. Em dado momento, em um pulo rápido passava do trapézio para a corda bamba. O corpinho balançava para um lado, para o outro, braços estendidos para os lados buscando equilibrar-se no quase nada, parecia que ia cair, equilibrava-se. Em uma dessas tomei um susto e gritei:

-Deus, a menina cai!

Ela ouviu o grito e percebeu o susto, distinguiu a pessoa. Firmando-se, riu do alto, quase que deu com a mão num gesto de obrigado.

Foi apenas um susto. Verdade que embaixo dois cidadãos atentos olhavam para ela e parecia que acompanham os movimentos, prontos a ampará-la em caso de insucesso e queda. Um deles era seu pai.

Encerrada sua parte a menina desceu até a platéia e me cumprimentou com um sorriso leve e uma palavra de agradecimento:

- O senhor se assustou, não foi? Muito obrigada. Pode ser um pouco perigoso. Sou bem treinada, me exercito muito, horas e horas antes da função.

- É, me assustei! Quase... Não tem medo?

- Não. Quem tem medo não sobe em trapézio nem anda na corda bamba... Acho a corda mais perigosa um pouco. Não tenho medo. Aqui a vida da gente é sempre arriscada.

Longo o papo, para uma introdução. Eu, vendo que ela ia afastar-se, fui adiantado:

- Não sai do circo, não dá umas voltas na cidade?

-Às vezes, ás vezes... – soprou com um sorriso.

- Que bom, respondi – certamente a verei. Mas por favor, cuidado...

- Obriga mais uma vez – ela sorriu afastando-se.

À saída do circo encontro-a na porta, do lado de fora.

- Oi, vestiu-se ligeiro... Não é ágil só no trapézio. Na vida também.

- É, no circo é assim. A gente faz e resolve tudo correndo. O tempo é curto, precisa ser bem usado.

- Entendo. Topa dar umas voltinhas comigo, conversar um pouco, tomar um sorvete ou um chá...

- É, vamos. Sem compromisso. Tempo curto. Preciso repousar para estar disposta de manhã cedo. O circo inicia o trabalho às seis da manhã.

Tomamos um chá, bem quente. Era mês de junho e o tempo frio. Conversamos pouco, rimos muito, penso que nos entendemos bem, agradamo-nos um do outro. Dezoito anos. Uma profissional do trapézio... Do circo, aliás, sabia fazer e fazia de um tudo, de bilheteira a malabarista, tudo. No circo nascera e aí aprendera e se profissionalizara, aí residia. Morre-se cedo no circo, ela falou, sua mãe foi-se aos vinte e oito, de uma queda da corda bamba. Ainda tivera oportunidade de dar-lhe as primeiras lições, nos seus seis anos.

- Aos vinte e oito a mãe, de uma queda - perguntei de sobrecenho erguido, e não tem medo?

Não. Não tinha o direito de ter medo, falou. A vida era aquela e só poderia ser aquela, não havia outra. Nem todos morrem cedo. Há os que alcançamos sessenta e até mais.

É isso mesmo, fico pensando. Realistas, conformados com o destino que lhes cabe viver. A vida é uma incógnita para qualquer um, em qualquer situação.

Bem, a partir daí eu não perdia função do circo. E todos os dias saíamos a um rápido passeio, a Ângela e eu. Ela dezoito anos, eu vinte e quatro. Eu estudante, último ano de medicina, ela de função circense. Todos os dias? Três dias apenas. No quarto...

Ângela desaba quando ia pular do trapézio para a corda bamba. Atropela o atento vigia de seus passos e estatela-se no chão.

As pessoas se levantam, gritam assustadas:

- Que é isso meu Deus, a moça caiu. Será que morreu?

Corro lá. A função para, o pessoal do circo em roda da trapezista, está olhando pasmada, ela sem gemidos, sem palavras.

- Ângela, estou aqui. Dá licença, pessoal, sou médico. Dá licença.

Examino-a superficialmente, ela em silêncio, todos em silêncio.

- Fraturou fêmur, Ângela, fraturou o fêmur. Precisa de cuidados médicos especializados urgente. Deve engessar a perna. Aqui não tem como. Quem é o responsável por você?

Antes que a acidentada respondesse apresenta-se um senhor – “sou eu, seu pai”.

- Olhe meu amigo, a Ângela precisa de cuidados médicos que só pode encontrar em Salvador.

E ela:

- Pai, é o moço com quem tenho saído estes dias, que lhe falei.

- Ah meu jovem, que recursos temos, nós todos aqui somados, para um tratamento dessa natureza?...

- Não haverá problemas nem custo. Depende da concordância de vocês. Sou estagiário no Hospital Ana Nery, de Salvador, hospital público. E ali fazemos isso sem custo. O SUS assume.

-E como é que eu chego lá, como nós chegamos?

- Há de dar-se um jeito. É incômodo, muito dolorido, mas poderá ir em meu carro. Alguém acompanhando, para apoiar. Precisa que seja homem. Tenho residência em uma república de rapazes, não dá para ser mulher.

- Ela?

- Ela vai para o hospital, não haverá dificuldade. Faço plantão e minha cama na república fica para o acompanhante. O senhor poderia acompanhar? - pergunto ao pai.

- Meu Deus, e o circo? Quem cuida?

- Bem, se não engessar a perna e não fizer um tratamento fisioterapeuta depois, adeus circo, adeus trapézio e corda bamba. Limitar-se-á ao caixa - foi a dura palavra que tive de oferecer. Estou à disposição da Ângela, de vocês para ajudar.

Foi o silêncio, as pessoas olhando umas para as outros. As do circo, os curiosos. Um moço adiantou-se. Olhando para o pai de Ângela e seus pares, falou:

- Se os senhores concordam, se não houver objeção eu acompanho a moça. Ela hospitalizada, retorno de ônibus. Depois de curada ela sabe se movimentar e sair-se bem.

Olhares, consultas e uma decisão do pessoal circense. O pai acompanharia a filha e retornaria em seguida. Ela saberia reencontra-los quando estivesse curada, em qualquer lugar onde se encontrassem na oportunidade. E foi a Ângela para a capital, para o Hospital Ana Nery.

O tratamento fisioterapeuta demorou por cerca de um ano. Já eu havia concluído curso e Ângela esteve presente à solenidade de formatura, deu para dançarmos a valsa. Demais aconteceu que o hospital de pequeno porte que se havia iniciado em minha terra três, quatro anos atrás, estava concluído e equipado, se inaugurava. Eu nomeado para a direção.

Ângela de alta, pronta para enfrentar a vida de circo, como era a sua vontade. De novo ao trapézio e à corda bamba. O seu mambembe convidado para uma temporada em minha pequena cidade. Arte de meu pai o convite. Sabia do meu interesse pela Ângela.

E lá andava, braços estendidos para manter o equilíbrio na corda, a minha doce menina. Era outra vez o mês de junho.

- Como é, vamos tomar um chá, eu propus à saída do circo.

- Não, meu amor, não dá. Eu quero é cama. Você comigo. Chá a gente toma amanhã de manha.

Ao cabo da temporada o circo partiu. Ângela não, que estava de neném.