Obra regada a cachaça
Esse texto foi baseado em uma história real contada por um professor meu nos tempos da escola técnica.
Seu Jair era segurança do trabalho e estava contando os dias para se aposentar, de fato tocava sua última obra: um edifício de vinte e três andares. Como em todas as obras sobre sua supervisão essa contava com um longo período sem acidentes com afastamento.
Seu Jair era a competência em pessoa, rigoroso com os funcionários, todos tinham que usar seus equipamentos de segurança individuais e participar dos treinamentos, mas esse rigor se traduzia em menos tempo perdido e menos acidentes.
Entretanto seu Jair ficou sabendo que alguns funcionários estavam trabalhando um pouco mais alegres que o normal e quis passar a história a limpo. Ele se dirigiu ao grupo do qual ouvira falar e interrogou com seu jeitão de sempre:
- Bom dia pessoal!
- Bom dia seu Jair!
- Eu queria saber o motivo dessa felicidade toda, não posso participar não?
- Olha seu Jair – falou Tião Marreta, um alemão forte igual um touro – a gente só tá rindo um pouco da vida, vida boa, é o prazer de estar trabalhando e proseando com os amigos.
- Sei – seu Jair estava desconfiado – mas vêem se vocês prestam mais atenção no trabalho.
- Pode deixar seu Jair – falou Zé Lingüiça, magrelo igual ao escritor dessas linhas – a gente tá firme e forte – falando isso ele cambaleou e quase caiu levando toda peãozada aos risos.
“Deixa estar”, pensou seu Jair, “Esse bafo de cachaça. Ainda pego essa cambada!”
No dia seguinte, logo na entrada do trabalho, seu Jair montou um grande esquema e revistou os pertences de todos os funcionários em busca da mardita, mas nada. Pelo menos teria um dia sem aborrecimentos.
Engano seu. Ao passar pela turma de novo ele encontra todos mais uma vez muito alegres e cantando prosa, o serviço mesmo estava parado.
- Mas o quê que é isso aqui? – os trabalhadores se assustaram e arregalaram seus olhos já vermelhos.
- O seu Jair – era o Zé Lingüiça – a gente só tá dando um intervalo pra descanso.
- Ora, o horário do almoço terminou só tem meia hora, e esse bafo de pinga Zé? Se eu pegar alguém bebendo aqui é justa causa! Ouviram bem?
- Que isso seu Jair, - agora falava de novo o Tião Marreta – o senhor revistou todo mundo na entrada, ninguém é doido de trazer bebida pra cá não.
- Tudo bem – seu Jair não podia fazer nada sem provas – mas estão avisados.
Terminado o horário de trabalho seu Jair fez hora extra e com a ajuda de uns auxiliares revistou a obra toda, andar por andar e tijolo por tijolo, mas nada, nem uma garrafa vazia. No dia seguinte também revistou todos os funcionários novamente, em vão.
O pior é que ele sempre pegava a galera animada. Mas de onde estaria vindo a cachaça?
Assim passaram os dias e as semanas, até que chegou a data de seu Jair se despedir de todos e se aposentar, tinha comprado um sitio na roça e só cuidaria dele agora. Mas não podia ir sem desvendar o mistério.
- Olá Tião Marreta, oi Zé Lingüiça!
- Oi seu Jair – disse Zé Lingüiça já trocando as pernas – achei que o senhor não ia se despedir dos amigos.
- Que isso, não ia fazer essa desfeita não, mas eu também queria saber outra coisa – seu Jair coçou a cabeça – gente, eu sou macaco velho, já peguei muito peão fazendo coisa errada, mas vocês – dizia isso olhando para toda a turma – vocês conseguiram me enganar. Olha gente eu tô aposentando, juro que não vou contar nada pra ninguém, mas eu preciso saber como é que vocês traziam cachaça aqui para obra.
Foi uma gargalhada geral.
- Oh seu Jair eu confio no sinhô – disse Tião Marreta – acho que a gente pode contar, né pessoal?
Todos assentiram que sim.
Tião Marreta abriu sua caixa de ferramentas, tirou algo lá de dentro entregou para seu Jair.
- Toma seu Jair, toma um gole que é da boa.
- Ah, mas peão é um bicho miserável mesmo!
E seu Jair segurou nas mãos uma daquelas mangueirinhas de nível, usadas para nivelar as paredes e que deveria conter água, cheia de cachaça, se deu por vencido e tomou um bom gole aos aplausos da peãozada.