MEU CACHORRO PERI (parte 6)
UM TAL DE CORONEL
Na história de minha terra, esse coronel foi o maior pensador que já tivemos. Pobre de mim tomar essa medalha dele mas trago, da minha infância, lembranças muito tristes desse cara. Era um Dezembro chuvoso como sempre, meu pai já fazia uma semana que não conseguia levar o leite para o leiteiro de tanto que chovia. Numa noite, enquanto estava ajudando minha mãe passar sabugo nos queijos para não azedarem, escutei o Peri latindo. Latia com força com coisa que estava chegando um inimigo. Meu pai saiu na escada, viu o Coronel, mandou o Peri calar a boca e o convidou a entrar. Até hoje eu não consigo entender como ele passou em cinco ribeirões cheios de água daquele jeito. Pelo menos para atravessar enchentes ele tinha parte com o capeta. Chegou debaixo de uma capa preta, tomou um gole de cachaça que meu pai sempre tinha, olhou para nossa casa com cara de desdém e perguntou como a vida estava indo. Meu pai respondia que estava tudo bem porque tinha capados no chiqueiro, o paiol ainda estava pela metade, a roça de milho Cunha estava muito bonita e tinha cinco novilhas nos dia de dar cria.
Esse coronel me marcou muito porque foi o meu primeiro contato real com o mundo lá de fora de minha roça. Chegou num burro bem arreado, barbudo, cheirando falta de banho e se achando o dono do pedaço. A única coisa que tenho de reclamar de meu pai foi esse episódio. Mesmo sabendo depois que o tal coronel era dono de um mundo de terras, mesmo sabendo que ele ajudou muito meu pai antes dele se casar, não conseguia entender aquele sujeito com cara de doido colocar minha irmã de dois anos no colo e falar que ela ia ser a mais linda da minha terra. Espremia a Maguinha entre as pernas como ela fosse um prêmio pela sua loucura. Na época tinha duas coisas que eu adorava. Uma era o Peri e depois a Maguinha. Quando vi aquele sujeito, que não conhecia, espremer minha irmãzinha entre as pernas, fiquei completamente louco. Subia na mesa, olhava para meu pai com cara de incapacitado, olhava para minha mãe com os olhos esbugalhados, não pela fumaça do querosene e sim pelas loucas atitudes do ilustre visitante. Dei uma de inocente, abri a porta da sala, o Peri entrou e tentou dar uma mordida no coronel. Deu certo porque, para se defender, ele soltou minha irmã que já estava aos prantos. De novo, meu pai entrou em cena, mandou o Peri sair e eu para a cama. Foi a primeira noite na vida que não consegui dormir porque meu pai chamou o cara para dormir lá em casa por causa da chuvarada. Não lembro muito bem o que se passou depois, só lembro do Peri, de madrugada, latindo igual à um louco, dando as boas idas para nosso mal ilustre visitante. Durante muito tempo, quando o Peri latia em noite de chuva eu ficava com medo de ser o coronel. Ele foi a primeira pessoa no mundo que tirou o meu sossego para dormir porque antes dele, quando o Peri latia eu achava que só era um lobo rodeando nosso galinheiro. Depois do coronel, ficou nos meus sonhos que lobo era só um bicho querendo se alimentar mas a gente tinha inimigos muito piores que já moravam numa tal de cidade onde pureza significava fraqueza e maldade significava poder. Se na história de minha terra ele foi um cara inteligente, na minha história ele foi só mais um louco que andou por aí.
JOSÉ EDUARDO ANTUNES