Gostinho de quero mais
Aprendi com Vovó que certas coisas na vida não se esgotam jamais e, como nos dizia deixam sempre um ‘gostinho de quero mais’. As coisas da infância são assim... a gente rememora, rememora e, com aquele saudosismo próprio das coisas que queremos eternizar, elas voltam sempre, e voltam com aquele insaciável 'gostinho de quero mais’. Penso que a memória gustativa, também tem seu baú farto desse gostinho em suas histórias...
Não, necessariamente, o gostinho de quero mais, tenha a ver exclusivamente, com alimentação. Casualmente ou não, nesse momento, meu olhar retrô, deparou-se sobre nossa mesa de jantar... Ah, e quanto desse sabor ali encontrou! Mesa de gente pobre em tempo de duras lutas, quando para alimentar a boca da gurizada, Papai e Mamãe apelavam para a multiplicação dos pães... E, miraculosamente, o milagre acontecia. Do contrário, alguém, geralmente eles próprios, ficariam apenas com o gostinho de quero mais...
Lembro, certa ocasião em que recebemos a visita de uma prima com sua enorme familia, para o almoço. Mamãe, fez milagres no fogão, emendou daqui e dali, para servir aquele almoço. E, propositalmente, penso agora, envolveu-se na organização da cozinha, enquanto almoçávamos. O esposo da prima, serviu-se uma, duas e, quando ameaçou servir-se pela terceira vez, minha maninha de quatro anos na época, ao vê-lo avançar sobre o prato das deliciosas morangas carameladas, que a essa altura continha apenas uma mísera fatia, não teve dúvidas. Levantou-se sobre a cadeira e, em alto e bom som lhe advertiu: _ Minha mãe também gosta de moranga! Meio sem jeito o primo disfarçou, servindo-se de outros alimentos. Sobre a mesa, no entanto, a fatia de moranga caramelizada, ninguém tocou... Ficou o gostinho de quero mais no paladar do primo e, por certo também de Mamãe, assim como o fato em nossa memória...
Nossos almoços de domingo e suas histórias... em casa de família simples de periferia, geralmente almoço especial. Ao menos, era o que Papai e Mamãe tentavam fazer. Então, aos domingos Papai sacrificava uma de suas galinhas e, Mamãe caprichosamente preparava. Éramos quatro filhos, mais Vovó que morava conosco, dava certinho dois pedaços para cada um. Contando que Papai, dizia preferir as asas, para Mamãe e Vovó sobravam o pescoço, a sambiqueira e a carcaça para dividirem entre si. Eu ficava sem entender, porque afinal, gente grande gostava tanto de roer ossos também aos domingos. Enquanto nos deliciávamos com as partes carnudas do frango, restava-lhes o gostinho de quero mais. Meu irmão tinha preferência pela ponta do peito, o ‘jogador’ como denominava e, logo após o almoço disputávamos quem lavaria a louça, puxando um de cada lado dos ossos enforquilhados do jogador. Ingenuamente, eu me arriscava, ele sempre ganhava o jogo e, eu... a louça para lavar. Ah, a vingança tarda, mas não falha...
Lembro certo domingo, quando já estávamos nos ajeitando na mesa, uma visita inesperada. Era tio Gordo, um tio de Mamãe que chegara para o almoço. O que tínhamos era aquilo ali mesmo, Mamãe novamente partiu para o milagre, dispondo-se a fritar alguns ovos. Mas, tão logo sentou-se à mesa, Tio Gordo foi direto ao frango e, serviu-se do dito jogador. Eu vibrei, olhando com sarcasmo para o mano, me deliciando com o sabor da vingança. Depois penalizada com seu susto, quase me arrependi... o almoço ía ao meio e, meu irmão que dessa vez, compulsoriamente, ficara com o pescoço da galinha, deu um grito e, com os olhos esbugalhados, olhou para Mamãe e gritou: 'Socorro! Comi o ‘zóio’ da galinha!' Dessa vez, penso que tanto o riso foi coletivo, quanto o gostinho de quero mais...
Assim penso, também ficaram as brigas com meu irmão, com gostinho de quero mais... ah, toda vez que deveríamos ir ao açougue eu escapava a todo custo... Tarefas da escola, a maninha para cuidar ou outra desculpa qualquer, era mais uma chance de me vingar. Afinal, quem gostaria de comprar ossos?! Então, o mano subia a lomba assoviando... de raiva! Até hoje, não sei ao certo se sua raiva era de mim, de mamãe por mandá-lo realizar aquele tipo de compra ou se dele próprio. Difícil para o menino em seus oito ou dez anos, entender porque deveria roer ossos raspadados e ficar literalmente, com gostinho de quero mais, enquanto a carne desossada iria alimentar outros meninos com estômagos iguaizinhos ao seu. Por mais que nos esforçassemos, não compreendíamos... Ao retornar para casa ele descia a ladeira quase correndo, de cabeça baixa, sem olhar para lado algum, temeroso por encontrar um coleguinha de escola e ser surpreendido com ‘aquela mercadoria’ correndo o risco a ter que dar explicações...
Aliás, algumas vezes teve a presença de espírito de esconder-se atrás de seu cãozinho. Sim, quando o encontro foi inevitável, sem gaguejar, a resposta saiu de pronto: _ ‘são ossos para o meu cachorro’! Hoje ao recordar ele ri do menino que preferiu passar por cachorro a sentir-se humilhado... Ah, querido mano, quantas vezes enganou a si mesmo e, com essa mentira esfarrapada sobreviveu driblando a pobreza...e, labuzando os beiços ao roer os ossos em nosso costumeiro cardápio, conhecido como ‘agonia’ para uns, ‘aflição’ para outros e, com certeza, com gostinho de quero mais para todos...