O CASSACO ZÉ GATO
Boa índole, bom jeitão de portar-se, até de sobra, desde que chegou ao Camará, teve o amigo e cassaco Zé Gato. Lá nos foi bater, puxando uma cachorra magra, quando tangido pela inclemência da seca. Deu de cara no sítio de meu pai na condição de “cassaco”. Para os desavisados, já ele era um cassaco, mas em absoluto não se tratava do bicho cassaco, aquele traste do mato, mal cheiroso, também dito timbu.
O timbu fede pacas, embora haja quem o coma, com todo o apetite, como se comesse o melhor filé bovino, ou então a picanha argentina. Na língua dos nordestinos, o cassaco a que me refiro, ao falar do Zé Gato, é o gajo que espalha as pernas pelo mundo em busca de trabalho, mesmo qualquer trabalho, nos tempos de longas estiadas.
Jovem, robusto, os cabelos pretos e esticados, à indígena, a pele pardo-arroxeada. Em princípio, apenas um caboclo a mais na fauna humana dos desvalidos que saem à busca do que fazer, quando aperreados pela violência natural das quilométricas faltas de chuva.
Bem que já se podia imitar Israel, no que concerne às irrigações, não em meter chumbo nos povos da vizinhança, mormente o Povo de Deus, aquela gente sofrida da Palestina. Mas, aqui, Nordeste, ainda não se faz assim, como os israelenses, no adubar a terra e preservar as águas vindas do alto e dos socavões do solo.
O Nordeste brasileiro ainda não sabe capitalizar as parcas águas que os exíguos invernos despejam sobre a terra, o que é uma pena. E o resultado são as agruras das históricas secas, as estiagens que expulsam homens fortes e resolutos de seus domicílios e torrões natais.
Pois muito bem, bem, bem... Zé Gato aportou, de cara, no Camará, precisamente numa dessas épocas em que os céus são comedidos em irrigar a gleba com os filetes providenciais do inverno. A chuva é uma bênção divina, para os que crêem, e assim pensa o nosso camponês. De malas e cuias, sem bagagem nenhuma, o moço com porte de silvícola se nos ficou no sítio, algum tempo, transferindo-se depois para ser morador, um tipo de agregado, lá em menor herdade de um dos genros de meu pai.
Simpático, de bons modos, maneiroso, servidor e ágil em suas funções de peão. Raimundo, o meu cunhado, que saldou bonito em tê-lo como peão. Tratava-o como se um filho fosse. E ele, Zé Gato, agora o ex-cassaco, correspondia aos afagos do amo, com gentileza e presteza muitas. Ambos se deram bem, até que o forasteiro tivesse um fim trágico.
Quem saberia de sua vida? Que de bom ou de ruim fizera em seus pastos de origem? Sei apenas que fora vindo das bandas dos sertões de Canindé, lá onde se alargam regiões como a serra do Rato, a hoje cidade de Itapebussu, ou Itapebuçu, como quer a Academia de Brasileira de Letras, lugares remotos como Cruz do Lajedo, Pocinhos, Bu, Ladeira Grande, sei lá, e demais circunstantes paragens.
Alguns anos, nem me atrevo a calcular, Zé Gato vivia sob a tutela de Raimundo Batista, sempre um rapaz cumpridor dos seus deveres de peão, serviçal e quase filho do pequeno sítio dos Apertados. Os Apertados, gleba miúda de Seu João, pai do meu cunhado, verdadeiramente, apertavam-se entre o Camará e o sítio Catarina, outro pedaço de uma remota parentalha.
Em dia infeliz, aziago, dia de enxofre na madrugada, o moço Zé Gato – quem sabe se não era do clã de Joaquinho Gato, personagem posto na Literatura Cearense pela brilhante pena de Juarez Barroso* – foi balançar o esqueleto no Salgado, lá para além, mais embaixo, da Catarina, de Seu João Brígido. Talvez fizesse luar ou noite escura. É incógnito o meu saber sobre as nuances macroscópicas e externas daquela triste madrugada.
O Salgado, um imponente sítio, de léguas de lonjura, com marcos de outro contraparente de minha mãe, cujo senhor de muitos canaviais era um dos filhos do coronel da Guarda Nacional, este com graça recaída sob o sonoro nome de Honorato Gomes. Mas o pessoão não fora apenas coronel do mato, bicho de faz-de-conta, senão também cabra da rede rasgada, com voz de mando e tudo, até junto ao coronelismo dos jagunços de Getúlio Vargas. Patente comprada com dinheirama, espada dependurada na parede, e então?
Tão gente boa, honesto e prestativo; tão camarada, o Zé Gato, ex-cassado de açudes e rodagens engendrados na fase de impiedosas secas. Porém, naquele dia, aliás, uma noite, após o chafurdo da festa matuta, quando já fazia madrugada alta, Zé Gato foi abatido por incalculável soma de facadas, bem à parede do açude de Seu Bateia, o tal herdeiro aderente de minha mãe e filho do potentado mandachuva da Guarda Nacional.
Bicho miúdo, ainda, eu convivi muito pouco com o Zé, no Camará. Por lá, sem esquentar assento, só fez estação de passagem. Mas ia nos visitar com certa frequência. Virou cabra do genro de meu pai, o que no-lo estreitava com alguma regularidade. E lá ia ele, até onde morávamos, vez por outra. Afinal, fora no Camará onde ele começou a fazer parte de nossas vivências, como cassaco.
Num adjutório de facas, punhais e peixeiras, vários cabras de Seu Bateia, com profundas e horripilantes facadas, no bojo daquela madrugada fúnebre, abateram o Zé Gato. Eu, apenas um menino magricela e de pernas finas, comovi-me com a tragédia, feito o diacho. E quem teria levado aos ouvidos da família do jovem trucidado a infausta notícia da covardia do assassínio? Acho que nunca o povo dele tomou ciência de como, quando, onde e se mesmo, de fato, teria morrido com profundas facadas o seu querido ente.
A ingratidão da seca fez uma vítima de quem, não avalio por qual razão, tanto me impressionou e deveras se me aferrolhou no inconsciente. Zé Gato ficou nos eitos das minhas relembranças como se um primo, um irmão ou um companheiro de oficio, quem pode imaginar, até um sujeito de sorte igual, num banco de escola.
Foi-se, de vez, o rapaz bonzinho de não lembro se da serra do Rato, do lugarejo dos Pocinhos, do Bu ou da Cruz do Lajedo, que atualmente se diz Itapebussu. Que ele era daquelas bandas, disto me recordo bem e vou partir da terra dos vivos afirmando com a mão sobre a Bíblia que o varão de cor jambo, com o cabelo de indígena, foi um ente morto que ficou na total impunidade, mesmo que nem as inúmeras, por aí, neste mundão nacional.
Fort., 25/09/2010.
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(*) Juarez Távora Barroso de Albuquerque Ferreira foi jornalista, radialista e escritor. O seu “Távora” veio como acréscimo, graças à simpatia que o pai dele devotava ao tenentismo; uma homenagem ao general Juarez Távora, de tradicional família cearense e um revolucionário dos anos 30. Juarez Barroso bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Socais. Também formado em Jornalismo e Publicidade. Atuou na imprensa de Fortaleza e no “Jornal do Brasil”, RJ. Acidentalmente nasceu em Pernambuquinho, Serra de Baturité, CE, mas com a família já montada em Cruz do Lajedo, atual Itapebussu, em 19 de outubro de 1934. Faleceu em 18 de agosto de 1976. Em vida, publicou apenas o livro de contos MUNDINHA PANCHICO E O RESTO DO PESSOAL; JOAQUINHO GATO e DOUTORA ISA são obras póstumas, todas reunidas em OBRA COMPLETA, volume único, pelas Edições Demócrito Rocha, Fortaleza, em 2001. Pelo seu estilo e originalidade, hoje é considerado um clássico cearense, no conto.