SEU DOCA E SUAS DANAÇÕES

Morava em logradouro de classe média, com a casinha própria montada numa das avenidas principais do bairro, onde o palmo de terra era valorizado. Lá, é a mais plena verdade, levava uma vidinha humilde, mas ele nem se apoquentava porque fosse um dos cidadãos mais pobres, meio àquela gente metida aos luxos bestas e obesa de tremendas nove-horas.

De maneira alguma Seu Doca cambista ficava acachapado pelo simples fato de vender o bicho para o pessoal, indo e vindo, rua abaixo, rua acima. Aquilo, ao que parecia a todos nós, até lhe dava íntima satisfação. É que a sorte, vez ou outra, batia à porta de algum morador que arriscasse no jogo pelas mãos dele; ele, o cambista oficial do Monte Castelo. Aposentado com migalha, então o gosto de vender o bicho da sorte lhe vinha como puro acréscimo.

Ora, ele não ia a levar, fazendo bonito, os dias do viver conforme os desígnios das Mercês de Cima? Claro que ia. Então, teria mais era que ser gentil, todo entupido de cordialidade, por força do seu ofício de poder amealhar algum vil metal para o bolso das pessoas mais de pé no chinelo.

Cachacinha aqui, outra acolá, raramente as “lapingonchadas” do mel davam para fazer puxar fogo ao cambista deveras versado em bebericagens. E Seu Doca fazia por onde não fazer falta em todos os balcões e estabelecimentos – bares, mercearias, botecos, quiosques –, principalmente nos lugares onde se vendia a água que passarinho não bebe.

Apesar de ainda ser, apenas, um projeto verdoso de garoto, quando conheci aquele simpático fazedor de jogo, andarilho e bebedor de pinga, eu já gostava de puxar conversa fiada e ficava a desfiá-la, com insistência, até onde a ponta do novelo tomasse lonjura. E o diacho é que Seu Doca era dado a pegar corda e também puxava um pouco de uma perna.

Para descontar as lapadas de cana que o homem tomava na bodega de meu pai, quase sempre a dependurá-las na caderneta do fiado, aquele tipo de fiado cujo pagamento só era realizado no dia de São Nunca, à tarde, ou que fosse mesmo por conta do governo, uma feita me deu na veneta de lhe perguntar o que lhe ocorrera com aquela perna coxa, lá dele.

“– Ô Seu Doca, o senhor já foi à guerra? E essa perna aí, o senhor não manca de uma perna?” – inquiri (hoje que deduzo) de maneira muito indiscreta.

Sem papas na língua, um venerando homem e o nosso cambista oficial do pedaço, ele me fez o relato da coisa acontecida. E ainda por cima nem pediu segredo, já que era limpo de ficha, sem complicação nenhuma com a polícia. Mesmo assim, àquela época, sequer era aventado que o jogo do bicho representasse uma contravenção, nem algo que pusesse em risco as almas mais crédulas, palpiteiras e jogadoras de qualquer comunidade.

“– Isto aqui, no meu pé, foi bala nos couros!... Rapaz jovem, ainda, eu fui dar em cima de uma mulher casada, e isto levou bem um ano. Mas não deu outra, lá um dia eca arriou a maca. Valeu mesmo. Aí, quando ela topou o negócio, foi que o corno do marido da dona deu pela charada. O cabra veio me tomar satisfação, e já me foi baleando no mocotó direito. Dos males, ainda foi o menor! Eu desarmado, ele só não me fez comer capim pela raiz por um milagre de Deus! Não quis me matar. Então, depois do berro, eu caí e fui parar numa emergência para o doutor extrair a pitomba de chumbo do meu tornozelo.”

Já sabedor dessa danação por que o coroa passara, ao meu entendimento uma façanha que tinha o tamanho inteiro de uma ida e volta gloriosas à guerra mais sangrenta, tempos depois, outra vez provoquei a loquacidade do velho. Queria-lhe era arrancar bastantes mais safadagens. Além do quê, Seu Doca, naquele dia, coitado, estava – meio muito – troviscado e nem contou pipocas. Então, sim, foi aí que aproveitei, a fim de ouvir mais reinação:

“– Seu Doca, suspeito de que o senhor virava bicho, lá na sua terra, hein? Sei que pintava o sete. Vá, homem, além do tiro no mocotó, me conte outra.”

E, de fato, ele pescou a isca. Foi franco, de novo. Parece que era dia de um feriado, sem venda de bicho nem dezenas, centenas e milhares para tascar e calcular na pule, o anoso gajo abriu o verbo como pôde fazê-lo:

“– Essa eu te conto, mas você faça boca de siri. Hoje me arrependo, mas, muito novo, fui um pivete sem miolo. E lá no meu interior, apareceu uma igrejinha, com um monte de crentes que se reuniam, e era uma latomia por acolá. Faziam “aleluia” num alarido lascado.”

Não sei se lhe bateu algum remorso, mas o homem fez pausa, suspirou e pigarreou e, em seguida, completou seu discurso narrativo.

“– Naquela idade, eu não atinava mesmo, não. Como era tempo junino, eu só andava com o bolso cheio de traques e bombas, mas bomba rasga lata, uma barulhenta de tinir nos ouvidos. Todo mundo lá na igrejinha miúda, orando, de olhos fechados. Então, foi aí que eu risquei uma bomba e, pela janela, joguei a b i c h a lá no meio dos crentes. Buuum!... Foi um estrondo roxo, daí fiz carreira grossa. Perna pra que te quero! Até hoje, menino, nunca ninguém descobriu quem fez aquele mal feito. Boca de siri, menino!”

Talvez nem mais ossada branca, cá na Terra, haja de Seu Doca. Mas, lá do Além, ele não me vai deixar mentir que foi ele próprio quem mexeu com dois marimbondos de picadas perigosas, e melhor que não os tivesse assanhado. De jeito nenhum!

Fort., 08//09/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 08/09/2010
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