O FURTO DE GALINHA, JOÃO FARINHA E O PIRAÍ
O FURTO DE GALINHA, JOÃO FARINHA E O PIRAÍ.
Este fato aconteceu em um arraial do interior de Minas Gerais, fundado em 1752 com o nome do riacho que banha a localidade. Hoje o arraial virou cidade e ainda conserva muita característica de antanho como: Criar aves e animais soltos pelas ruas, mesmo que seja na praça da igreja matriz.
Na década de 1960 e de 1970, os moradores da cidade ainda não se preocupavam, como não se preocupam até hoje, em cercar, devidamente, seus terrenos delimitando a propriedade com a do seu vizinho adjunto.
João Farinha era um cidadão-velho conhecido na cidade e gostava de uma boa cachaça. Ele já levantava no boteco. Mas era um homem de coração bom, aliás, boníssimo. Tanto que, quando bêbado tinha o hábito de pegar uma penosa do vizinho e presentear os amigos de gole, indo juntar-se a eles para tirarem o gosto da pinga com a galinha alheia. Seus filhos, meninos-moleques, matavam as galinhas com bodoque ou estilingue.
Sua vizinha adjunta era a dona Neuza, uma respeitável senhora da localidade, esposa do Mateus. Ela possuía em seu terreiro quase umas duzentas cabeças de galinhas, muitas outras aves e porcos.
A dona Neuza teve muitos filhos e um deles é o Marlon, garoto esperto, atleticano roxo. Na ocasião em que dona Neuza estava para dar a luz a este hoje rapagão ela teve que ficar fora de sua propriedade, indo para Lagoa Santa uma semana antes do parto normal. Em ela regressando da parição, alguns dias depois do resguardo, saiu até a porta da cozinha do casarão que dava para o terreiro, com a intenção de tratar das suas dezenas de galinhas. E qual não foi a surpresa dela ao ver somente algumas cabeças de aves vindo ao ser chamado para comer o milho dado por sua mão.
A mulher então começou a pensar e chegou à conclusão de que quem havia comido suas cacarejadeiras era o seu vizinho, o João Farinha. Então ela foi até sua casa e perguntou ao mesmo pelas galinhas desaparecidas, recebendo como resposta um seco: não sei, não dou notícia. Ela insistiu com o conterrâneo, dizendo que ficou no hospital por mais de uma semana e que suas galinhas sumiram nesse período. O homem continuou a negar ter comido as galinhas. Ela o relembrou que a bebedeira dele o deixava fora de si. Mas de nada adiantou e dona Neuza acabou voltando para sua casa, aborrecida mesmo.
Ela confidenciou ao marido que suspeitava do ladrão de galinha como sendo o João Farinha. O marido nada comentou, apenas sinalou com a cabeça. A mulher então resolveu procurar a vizinha de frente, a dona Creusa, e comentou com ela o ocorrido, perguntando-lhe se ela viu algum estranho em sua propriedade, durante sua ausência, recebendo resposta negativa. E a dona Creusa acrescentou que o feitor da obra só podia ser mesmo o João Farinha e seus amigos de cachaça.
Neuza ficou entristecida e disse ao marido que não criaria mais galinhas, o que de fato o fez num domingo. E distribuiu as aves do terreiro para a vizinhança, inclusive para o João Farinha, ficando com três ródias para o almoço do próximo domingo, uma vez que sua família era grande, contando-se os genros, as noras e os netos.
Passado o tempo num sábado, à tarde, João Farinha apareceu na porta de dona Neuza, dizendo que seu galo pedrês havia fugido para a horta dela. Ela foi até o terreiro e não viu galo nenhum. Então voltou à porta e comunicou ao visitante não grato que ele estava equivocado. Porém, o homem, já alcoolizado, não arredou pé da porta e insistia para entrar e ¨pegar¨o galo-fujão.
Dona Creusa foi firme e disse-lhe que fosse procurar a ave em outro terreiro. O homem encostou-se no batente da porta e queria de todo o jeito entrar na casa. Então dona Creusa o mandou esperar e foi até o quarto e apanhou o piraí e mostrou-o ao indesejado vizinho dizendo: entre se você for homem. O João Farinha vendo o piraí na mão da mulher não quis conversa e tratou de sumir das vistas dela. E o galináceo foi encontrado bem à vontade degustando uma verdinha na praça da matriz.
João Farinha já contava mais de 68 anos de idade e participava do juntado de futebol bretão aos sábados à tarde e aos domingos de manhã.
Dois anos mais tarde alardeou-se pela cidade de que João Farinha tinha sofrido um derrame e tinha ficado cego das vistas. E, mesmo assim, ele continuou a tomar suas cachaças e a pegar as penosas dos vizinhos, quando bêbado. Conta-se que uma vez ele montou em seu cavalo e entrou na roça de milho do Murilo e trouxe um cargueiro para a cidade, distribuindo o produto pelas ruas da cidade e ainda dizia: comigo não tem miséria. E ia cantando a música Mané Tibiriçá de Moreno e Moreninho.
Os vizinhos de João Farinha o ajudavam: dona Creusa lavava-lhe a roupa, dona Neuza levava-lhe a comida e os amigos serviam-lhe a ¨marvada¨ da pinga. Os filhos dele cresceram, alguns se casaram, e tomaram rumo na vida ficando o homem a morar sozinho num casebre de adobe, sem pinturas. Os seus vizinhos se condoíam com a situação do solitário homem e nunca se queixaram à polícia sobre o furto das aves e dos produtos do roçado.
Passado mais tempo, João Farinha morreu do coração, num sábado de aleluia, sendo enterrado no domingo da páscoa, depois da missa matutina. O sino da igreja matriz repicou tristemente durante o cortejo fúnebre, puxado por uma junta de bois, daquele infeliz homem que fez sua história de furto de galinhas naquela pacata cidade interiorana das Minas Gerais.
Dissecando o texto:
a) João é o verdadeiro nome do personagem;
b) Neuza e Creusa são nomes verdadeiros;
c) Mateus é o verdadeiro nome do personagem;
d) Penosa é uma galinha ainda nova;
e) Ródia é uma espécie de galinha avermelhada;
f) Pegar é sinônimo de furtar a ave alheia;
g) Piraí é o chicote usado para guiar uma
junta de bois cargueiros;
h) Juntado significa reunir os jogadores para uma pelada de futebol;
i) Cargueiro significa os dois balaios de produtos levados por um
cavalo;
j) Verdinha está no lugar de grama;
k) Junta de boi é no mínimo de dois bois;
l) O conto é verídico e aconteceu numa cidade ao sopé da Serra do
Cipó, em Minas Gerais, Brasil.
Belo Horizonte, 13 de setembro de 2006.
F I M.