UM MASCATE LETRADO* [II]
Seu Homero, sujeitão novo, de uns trinta, por aí, assim. Alto, bem apessoado, sob o ângulo do convencional, e um cabrão apaideguado de fortudo. Barba sempre bem feita, campinho de pouso de delicadeza estampado no rosto. Educação de berço, uma finura de pessoão estava ali, na carcaça daquele camarada.
Clara moreneza na pele, tez bronzeada pelos sóis inclementes das estradas do Nordeste. Gramática de verbos desacorrentados, tudo à toa, novinhos em folha; verbos derramados pelo canto da boca, fuzilando erudição na ponta da língua. E ele sabia sustentar prosa com pelúcia de diplomacia, ah, mas se não sabia!... Sabia, e de mesmo.
Era mascate, vendia bugigangas em maleta de luxo. Ele, viajor das serras e baixios do maciço de Baturité. Aqui, acolá, com despachamento urbano de mercador de instrução incomum. E, quando lhe dava na veneta, o desentocador de palavras bonitas batia nas abas altas da comarca de Redenção, redondezas de Guassi, justo no sítio do Camará.
Um papagaio de bom papo, falante e escolado, lá pelos meios da civilização. Só andava cheio de “espilicuteza” nas artes do bem-falar, sem, no entanto, demonstrar engrandecimento. Por isso que nunca me esqueci do jeitão prazeroso do sujeito, pinta de candidato a deputado, a querer reza de reeleição. Mas o ramo dele era outro, sem passar a perna em seu ninguém.
De nariz enfiado na livrança da biblioteca, se me ocorre encarar o lombo encadernado do Homero Homem, posto ali na capa do “Menino de Asas”, eu nem atino, hoje em dia, por qual razão ainda me pinoteia no meio do picadeiro da memória aquele figurão ilustrado e bonachão de Seu Homero, vendedor de miçangas e ilusões nos meus idos de garoto montano e arredio.
Talvez marotagem das minhas hipóteses, teimosia talvez da areazinha que se tem na cachola, conforme sabença de Sigmund Freud, o fato é que ainda agora faço conjeturas de que o escritor potiguar e o mascate devem e/ou podiam ser a mesma pessoa. Bobagem minha, pois nunca irei ter disso nenhuma comprovação.
O tipo que me povoou audiências de conversas e serões noturnos no arriba-serra das águas do Camará ia lá somente, vez em vez, expor suas teteias e bijuterias, dispondo-as no varal dos nossos olhares matutos. Ele ia, no bem-bom, mas era negociar; passar nos cobres os “brebotes” e coisinhas de miudezas, questão de ganhar a vida, vida lá dele, evidente que isto fosse.
Não explorava a freguesia e até era amigo da casa, onde sempre pernoitava, com galinha gorda abatida de graça, cafezinho e conversa jogada fora. Ah, mas aquelas miçangas baratas – para todos nós, um mimo de chiqueza – pulavam aos olhos do sítio como tesouro precioso!
Eu não arquiteto, de oitiva, agora, se por mera coincidência, talvez por falha da lembrança, que o ambulante loquaz seria também rio-grandense-do-norte. Penso que igualzinho ele era ao escriba radicado no Rio de Janeiro. Mistério insondável, e não duvido ser coisinha miúda do meu traidor inconsciente. Mistério!
Tudo que se diz ou pensa pode ser apenas impressão boba, sem jeito, arrumação das veias do juízo. Contudo, de novo, retomando o pavio dos verbos declinados a rigor pelo caixeiro-viajante, e a depor em prol da verdade, nem nas aulas a capricho do professor Esmeraldino, vivente algum existia, por mais instruído que desembuchasse tanto verbo, com maior destreza e precisão: “– Eu amara..., nós amáramos, vós amáreis...”
Desmontando as ladainhas mais arrevesadas das conjugações, tanto dos regulares quanto dos irregulares, ou defectivos, o homenzinho, com o desempenho no sotaque, era cobrão de marca maior. Fineza de linguagem, tudo à moda empírica, pois sem manual à mão, que não era marruá. Ligeireza e atuação firmes no gume da língua, lá isto ele possuía de sobra; língua afeita de Camões, a fazer calar os caminhos da nordestineza.
Para Seu Homero, um mascate de letras lusas e, conforme o modelo padrão, debulhar a verbança dos auxiliares todos não lhe passava de café pequeno. E ainda, de quebra, jantando e contando potocas na mesa hospitaleira do Camará.
Fort., 11/05/2010.
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(*) O ‘causo’ [I], a este geminado, acha-se no acervo do Recanto sob o título de “Homero, o descascador de verbos”.