SEU ANTÔNIO 18

Em “Fogo morto”, romance que considero a obra-prima de José Lins do Rego, há um personagem revolucionário que, sequer sem conhecimento do termo, já nascera “comunista”. Mais revel do que revolucionário, na verdade; um contestador de primeira ordem. Vejam-no, em Lins do Rego, e hão de concordar comigo. É o mestre ferreiro José Amaro, herói popular do engenho cadente do coronel José Paulino.

Cá, na vida real, neste mundo das pessoas de carne e osso, encontrei-me – de longe – com um homem assim, também revel, como o mestre José Amaro. Só que ele, um revolucionário, de fato. Esteve metido em várias gaiolas, durante os escabrosos “anos de chumbo”. Seu apelido era “Antônio 18”. Agora, por favor, não me queiram mais inquirir o porquê deste epíteto. E eu lá saberia responder!

Seria a alcunha uma alusão ao livro de Karl Marx, “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”? Ou quereria ser uma referência ao movimento revolucionário dos então tenentes Eduardo Gomes e Antônio de Siqueira Campos, lá em Copacabana, no Rio Janeiro, no distante ano de 1922? Nem mesmo lhes posso afiançar que Seu Antônio 18 fosse um Antônio qualquer. Quem sabe, esse número “18” não fora algum codinome que pegou feito planta, ainda na escola ou nos eitos da Revolução Brasileira.

Ainda estudante universitário e curioso em desentocar pessoas e causos atinentes às lutas do povo, eu já o conhecia de vista. “De longe”, conforme assinalei supra, pelas imprecisas informações que dele me repassava um vizinho e amigo do ramo têxtil. O ponto comercial de meu pai situava-se numa esquina estratégica, dando passagem aos passos de Seu Antônio 18, quando ele desembarcava do ônibus.

A minha fonte tinha-o em conta de um ferroviário, como profissão. Ex-preso político, por diversas vezes, e, salvo engano, militando pelo velho “Partidão”. Também, sem certeza alguma, poderia ser um quadro da ALN, quisera sabê-lo com exatidão. Hoje, para o rabisco destas linhas, até o busquei no Google e telefonei para a Anistia 64/68, sem que ninguém lhe soubesse da origem e do tirocínio.

Como não vou traçar um perfil biográfico do homem, tampouco erigi-lo entre os anônimos das chamadas “esquerdas brasileiras”, arrisco mesmo apenas a jogar um pouco de conversa fora sobre esse incógnito cearense, que, ao que nos parece, não frequentava o panteão dos notáveis revolucionários. Talvez só um coadjuvante. Nem Dona Lourdes Albuquerque, a “Mãe da Anistia”, no Ceará, deu conta da vida de Seu Antônio 18.

De longe, repito, eu o conheci, vírgula, porque conversei com o intrépido cearense – se é que cearense ele era – uma única vez, e num ônibus da linha do bairro Montese. E a lotação do coletivo ia a sair pelas tampas, de tão cheio que um cacareco de transporte da época trafegava. Mesmo assim, meio ao cipoal de braços dos passageiros, com o calor dos corpos alheios aderente ao suar da gente, o nosso personagem iria desfiar no percurso de toda a viagem para o centro da cidade uma longa conferência de rebeldia e informações.

Como fora eu que puxei o papo, então paciência, quedei-me a engolir o discurso. O homem fisgara o anzol e não o soltava mais. Arrependi-me de ter atiçado fogo no palheiro, pois ainda reinava a ditadura militar e Seu Antônio 18 sapecava estilhaços de verbo para todos os lados, a plenos pulmões. Não tinha papas na língua, não. Sua verborragia soava alto e bom som para qualquer alcaguete, em redor, que o ouvisse.

O fato a que a reação chamava de “subversão” acontecia nos infernos da pedra e Seu Antônio 18, sem apelo nem choro baixo, era quem pagava o pato. Perdera a conta das vezes que fora enjaulado e ainda se atreveram de botar uma bomba no Aeroporto dos Guararapes, no Recife, daí resultando na morte de um general. E quem foi que acharam de mandar prender, entre outros, na Capital cearense? Isto, sem conjetura, todos vocês acertaram – preso por suspeita de terror, a mil quilômetros de distância, justo o Seu Antônio 18.

“– Mandamos trazer o senhor, até cá, porque sabemos da sua vida pregressa. O senhor tem bombas em casa ou sabe quem pôs a bomba no aeroporto do Recife?” – era a falação ingênua de um coronel, nas dependências de um quartel do Exército.

“– Coronel, eu sou um trabalhador. Se eu tivesse bombas, estaria no meio das ruas e praças, lutando em defesa do nosso povo!” – foi o que fez o nosso herói das lutas sociais, em plenos tempos de fogo.

Franco, direto, falador pelos cotovelos, desabotoado – este era o Antônio 18 com quem, embora sob laivos de temor, conversei uma única vez, meio ao aperreio de uma carga apertada de humanos. Nunca mais o vi, neste orbe; também dele nem azul de notícias. Com certeza, pela idade meio provecta que tinha nos couros, o homem já ficou de osso branco. Aqui eu o pus, num c a u s o mal cosido e ao correr das digitais, simplesmente para testemunhar que o revolucionário da Beira-Sol, ou talvez da Serrinha, não era bicho que se acaçapasse com ronco grosso de coronel nenhum.

Fort., 05/05/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 05/05/2010
Reeditado em 05/05/2010
Código do texto: T2238662
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